O pior não é a perda incontrolável do tempo. Na idade provecta, habituamo-nos pouco às transformações que o tempo impõe. E os nossos interlocutores eventuais mostram-se igualmente surpresos com o novo que lhes é servido, à medida que também envelhecem.
Quando jovem, ao tempo em que as pessoas entravam noite à dentro sem nada que as distraísse senão o hábito da conversa, a “causerie”, arte na qual os franceses não encontram competidores, era comum ver algumas delas exercitarem-se em jogos de passatempo. Enganar o tempo parecia uma forma necessária, única, de vencer o tédio naquelas noites vazias. De adiar a morte, diriam os aprovisionados de esperança.
Já não conhecemos o tédio, nestes dias quando nascemos para a pós-modernidade: os jovens falam pouco, além do gestual e das frases codificadas que lhes servem de explicação. Novas linguagens trouxeram-lhes, entretanto, o conforto de alguma forma de comunicação.
A música em conserva, em cassete, disquete, CD, DVD e outras formas compactas na qual o som, a melodia e os acordes se escondem, tornaram-se objeto de uso contínuo, mais pela parafernália tecnológica que veicula tantos sons bem-vindos do que pela composição em si. Contam, hoje, entre esses aficcionados, mais os equipamentos hi-fi, caixas acústicas, home theatre, home áudio high-end, e tudo o mais, do que as partituras, os prelúdios, sinfonias, suítes ou poemas sinfônicos…
Faço o que posso: leio. O que sempre fiz, aliás, por preferência e desvio padrão do mais que pouco me interessou na idade das descobertas. Exceto, naturalmente, a sedução do sexo, encarnada nas formas gentis da delicada arquitetura feminina…
Destes poucos hábitos, conservo deles o melhor das lembranças, mas dos livros não encontrei comedimento como usuário compulsivo, bibliopata confesso, bibliofrênico, como tantos cúmplices de uma cultivada companhia…
Escrevo. Tento ampliar minha íntima e singular relação com os livros. Pelo cheiro da tinta, pela tessitura do papel, pela cor que o tempo vai trabalhando sobre a encadernação. Confesso-me gutenberguiano, inseparável do papel e da impressão. Uso os meios tecnológicos da leitura e da escrita e as novas linguagens, por necessidade confessada — e sob o domínio do medo de ser considerado fora do tempo, antigo, como seriam tratados, hoje, os artistas de inscrições rupestres…
A velhice impõe, como condição de sobrevivência, a obrigação de sermos “modernos”.
Apesar de todo o avanço do universo “cyber”, da forma como a escrita foi envelopada por Jobs e Gates, da desconsideração desrespeitosa pela civilização do papel, o livro, servido à moda tradicional, continua mais seguro, bonito, cheiroso e palpável. Guardou a dignidade dos codex e das cópias dos escribas e das iluminuras. O livro de papel, impresso, é o único invólucro do pensamento e das ideias que traz a textura do papiro e do pergaminho. O que veio substituí-lo tem cheiro e gosto de matéria plástica, de cartão de crédito.
Pois bem, feito adulto e agora exposto à generosa indulgência dos mais novos, recolho-me às minhas inexpugnáveis intimidades, desfrutando o prêmio de uma doce solidão inteligente, da qual não largo senão para o encontro necessário, inadiável e consensual com Zuleide, sócia comanditária de uma íntima relação de coisas em comum, de convergências e até de doces dissidências passageiras, isso que se pode chamar de amor, na casa descendente dos 80…
Entre tantos e tão conformes hábitos cultivados, decidi-me por tarefas transversais, que me impusessem a disciplina perseguida. Que fosse uma obrigação autoimposta, terapêutica recomendada para casos de inadimplência de deveres de espera.
Comprei uma gramática e um dicionário de latim. É um bom exercício para os neurônios — aprender sozinho, sem ajuda. Alguns dos meus melhores mestres, a quem fiquei a dever desobrigas de inteligência intermináveis, eram autodidatas, fizeram as suas prendas de cultura e conhecimento por conta própria.
Não foi por simples acaso. Lembrei-me da breve convivência com um jesuíta, missionário no Alto Volta, em África, quando de sua passagem por Fortaleza. Antropólogo e filósofo, Jean-Claude Perault trazia uma bagagem de muitas línguas de pleno domínio. Muitas latinas, menos o português.
Na véspera do seu retorno à África, pediu-me que o acompanhasse a uma livraria. Na velha Livraria Imperial, de Clóvis Mendes, na praça do Ferreira, adquiriu o dicionário da língua portuguesa de Gustavo Barroso (futuro Aurélio) e uma gramática…
Pouco mais de um mês depois, escrevia-me de Ouagadougou uma carta em português, claro, explícito, elegante…
Desfiz-me de velhos hábitos, da tevê outrora insone, apaguei-lhe a cara indecente e cúmplice, deixei as vidraças da sala sem jornal para as limpar e polir. Escolhi a realidade que gostaria de ter ao meu dispor… De muito tempo, descobri que a ficção é mais real da que a realidade. E se bem escrita, é a versão ideal, incomparável, das vivências acumuladas, do legado de memória com o qual construímos a nossa história.
Guardei os livros, que se multiplicaram ao longo dos anos, leio-os, afago-os. Reencontro velhas lombadas quase esquecidas e acaricio-as com saudades antecipadas. Fecho-os com movimento firme para ouvir a pancada que ressuma de uma encadernação cuidada para sobreviver ao tempo.
Agora, o dicionário e a gramática de latim completam os meus vagares. Trazem-me a lembrança de dois mestres notáveis, Eleazar Magalhães e José Alves Fernandes.
“Rosa,rosae…”