Na esteira da séria atuação à frente das acusações promovidas na operação “lava jato”, diversos membros do Ministério Público Federal passaram a percorrer os quatro cantos do país a fim de buscar assinaturas e apoio popular para aquilo que eles mesmos denominaram como sendo as “Dez Medidas Contra a Corrupção”.
No entender dos autores daquelas tais “dez medidas”, o combate efetivo à corrupção, verdadeiro “câncer” instalado nas entranhas de todas as esferas de poder da nossa sociedade, demanda uma reação mais forte por parte do Estado.
Dentro desse quadro de ideias, a peregrinação promovida em busca das assinaturas necessárias para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular surtiu efeito, já que mais de dois milhões de brasileiros concordaram com as propostas e empenharam o seu apoio ao referido projeto.
No bojo daquelas medidas há, sem dúvida, boas ideias que até merecem uma discussão mais ampla e um debate sério a respeito da sua efetiva implementação (por exemplo, vale citar a proposta que criminaliza o “caixa 2” e àquela que tipifica o “enriquecimento ilícito de agentes públicos”). Todavia, salvo honrosas exceções, a maior parte das “dez medidas” representa verdadeiro perigo ao legítimo Estado Democrático de Direito.
De fato, longe de serem medidas “de combate” à corrupção, tratam-se, induvidosamente, de propostas que visam amesquinhar garantias constitucionais e direitos processuais de todo e qualquer acusado, independentemente do crime investigado.
Com efeito, diversamente daquilo que parece, as tais “dez medidas” não têm por escopo combater a corrupção propriamente dita, mas sim, em razão da generalidade das propostas, visam alterar, profundamente, o Código de Processo Penal, cujos preceitos são aplicáveis ao processamento e julgamento de todos os crimes.
Nesse contexto, não seria nenhum absurdo afirmar que a imensa maioria das pessoas que aderiu ao projeto de implementação das medidas, por ser jejuna em Direito, não tinha a exata noção do que estava assinando. Afinal, temas complexos e intricados como nulidades processuais, prescrição penal e sistema recursal, são difíceis de serem explicados não só para estudantes de Direito, como também para profissionais já formados e que não estão habituados aos meandros da Justiça Criminal.
Não é mesmo preciso ir muito longe para se constatar que a exata compreensão do inteiro teor e da abrangência das tais “dez medidas” demanda tempo e, mais que isso, apurado conhecimento jurídico.
E, claro, nem os dois milhões de brasileiros que assinaram o projeto nem a maioria dos nossos legisladores possuem estudo jurídico adequado para compreender, com exatidão, o real significado e as consequências nefastas que as tais “dez medidas” poderão produzir no nosso sistema processual penal.
A bem da verdade, tantas são as ilogicidades existentes nas propostas formuladas pelo Ministério Público Federal que, se bem compreendidas, muito pouco poderá ser salvo. Longe de pretender esgotar o tema, fato é que, dentre os inúmeros absurdos constantes daquelas medidas, há a ideia já ultrapassada de que o combate a um determinado delito se faz mediante ou o aumento das penas ou com a sua inclusão no rol dos crimes hediondos. Ledo engano!
Ora, Cesare Beccaria, em sua magistral obra Dos Delitos e Das Penas, já ensinava, há dois séculos, que não são as penas duras que desencorajam o criminoso, mas sim a certeza da aplicação da pena. No caso da corrupção, ao invés do aumento desarrazoado das penas privativas de liberdade, mostra-se muito mais lógico e eficiente aumentar-se, sensivelmente, apenas as penas pecuniárias.
Ademais, de nada adiantará recrudescer a punição da corrupção e de outros crimes contra a Administração Pública enquanto a burocracia, os altos impostos e o inchaço da máquina administrativa continuarem existindo. É precisa dar um fim na antiga prática de se “criar dificuldades para colher facilidades”, pois é justamente a partir das inúmeros obstáculos burocráticos que o Estado impõe aos cidadãos que nasce a corrupção.
Mas, a respeito das incoerências daquelas propostas, há muito mais a ser dito. De fato, sob a escusa de que o processo penal deve ser mais célere e “eficiente”, os autores daquelas “dez medidas” propõem alterações profundas no sistema recursal do processo penal e no sistema de nulidades processuais. Além disso, sem qualquer cerimônia, ainda sugerem o amesquinhamento do Habeas Corpus, com a “criação” de cláusulas limitadoras ao seu exercício.
Nesse ponto, é bom deixar claro que a defendida “eficiência” do processo penal não tem, necessariamente, relação alguma com celeridade. É claro que, dentro de um mundo ideal, seria muito melhor para toda a sociedade se os processos em geral (cíveis, criminais, tributários, trabalhistas, etc.) fossem concluídos dentro de um tempo razoável.
No Brasil, contudo, isso não ocorre muito mais por conta da estrutura deficiente do nosso Poder Judiciário, que é mal aparelhado e possui poucos funcionários, do que por conta das leis processuais. Afinal, o que poderia justificar, senão a falta de juízes e de estrutura, a demora de quatro, cinco anos, ou mais, para que um tribunal qualquer julgue um único recurso?
No caso específico das lides penais, a “eficiência” só é concretamente alcançada quando, dentro de um prazo razoável de duração do processo, a sentença é proferida e comina ao infrator uma pena proporcional e justa. Todavia, se a máquina estatal não se mostra adequada para dar aos processos a marcha que dele se espera, não é justo, nem adequado, buscar a correção desse problema – que é estrutural – com a mitigação do direito de defesa.
Que se corrijam as falhas da Administração Pública, com mais investimentos e contratação de pessoal, porém, sem sacrificar a ampla defesa e o devido processo legal. Processo penal justo não é sinônimo de rapidez. A justiça só é alcançada quando são garantidos aos acusados, sem exceção, o respeito às formalidades processuais e o acesso a todos os meios de defesa, aí incluindo-se a interposição dos recursos legalmente previstos.
Para finalizar, acrescente-se que uma das “dez medidas” tem como objetivo legitimar a admissão da prova ilícita no processo penal, desde que produzida com “boa-fé”. Tal proposta, além de absurda, é também um verdadeiro acinte à Constituição Federal.
Os conceitos de “prova ilícita” e “boa-fé” são absolutamente antagônicos. Onde existe um, não há o outro. Aliás, não custa perguntar: “boa-fé” de quem? A quem incumbirá avaliar a tal “boa-fé”? O non sense da ideia é tamanho que chega a ser difícil acreditar que tenha partido de operadores do Direito.
Como se pode perceber, é hora, pois, de colocar-se um fim no “oba-oba” que se vem fazendo em torno do referido projeto. Quem o critica não pode ser considerado um “herege”, como se estivesse defendendo a corrupção. Faz-se necessário ouvir e dar voz a todos os interessados, ainda que seja para reprovar o projeto ou diminuir, drasticamente, a sua abrangência.
Há falhas gravíssimas no bojo daquelas tais “dez medidas”. Aprová-las, da forma como propostas pelos seus autores, importaria em verdadeiro retrocesso nas garantias e direitos que nosso sistema punitivo levou séculos para alcançar.
(O autor é advogado criminalista e mestre em Direito Penal pela PUC São Paulo, Euro Bento Maciel Filho; Texto originalmente publicado no Consultor Jurídico)