Elogiada por Karl Marx, que a considerava um exemplo de organização e planejamento urbano, La Chaux-de-Fonds é uma pequena vila suiça situada a 70 km da capital, Berna, e a 10 km da França, uma das 5 nações que fazem fronteira com o país – as outras são Alemanha, Itália, Liechtenstein e Áustria.
Notabilizada por ser a capital mundial da indústria da relojoaria e terra natal de Le Corbusier, um dos mais importantes arquitetos do século XX, La Chaux-de-Fonds possui, segundo dados recentes, uma população de 38.625 habitantes, o que a torna, em termos populacionais, um pouco maior que Baturité, cidade natal do cearense Luiz Severiano Ribeiro.
Mas o que tem a ver Baturité com La Chaux-de-Fonds? Nada, confesso, a não ser – e aí já não haverá de ser nada – um assunto em comum: cinema.
Isso porque, para além de Le Corbusier, La Chaux-de-Fonds também é o lugar de nascimento de Frédéric Louis Sauser, ou Blaise Cendrars, como passou a denominar-se. E Blaise Cendrars, assim como Luiz Severiano Ribeiro – que foi o maior exibidor da história do cinema brasileiro – também atuou no mundo da sétima arte, mas de uma maneira, digamos, por demais distinta e episódica, embora não menos marcante: é dele o livro “Hollywood, la mecque du cinéma”, um relato irônico, curioso e preciso da cidade que virou símbolo mundial da indústria do cinema.
Porém, antes de entrar em detalhes sobre esse livro de pouco mais de cento e cinquenta páginas – que no Brasil ganhou o título de “Hollywood 1936”, numa publicação feita pela Editora Brasiliense em 1990 – creio ser importante falar um pouco mais do próprio Blaise Cendrars, esse personagem que, mesmo tendo nascido na suiça, foi considerado por seu amigo Paul Eluard como um dos maiores poetas franceses do século XX; os franceses, sabe-se, não costumam perder a chance de aumentar o patrimônio e a glória nacional.
Nascido em 1887, Blaise Cendrars demonstrou, desde a mais tenra idade, uma inteligência acima da média, além de uma alma inquieta e aventureira, isso muito devido ao pai, misto de empresário e andarilho que chegou a montar negócios no Egito e na Itália, antes de abrir falência e retornar, com a família, a Suiça.
Tomado pelo desejo de seguir conhecendo o mundo, Cendrars sai de casa aos 15 anos de idade, aproveitando a oportunidade de trabalhar como auxiliar de um comerciante de jóias que estava com viagem marcada para a Rússia, China e Pérsia, hoje Irã. Já manifestando inclinação para as letras, Cendrars transforma a experiência em um poema, “Transsibérien”, que viria a notabilizá-lo em 1913.
Com o acúmulo de conhecimentos e parte do capital adquirido nas viagens, Blaise Cendrars chega a Paris em 1910, tornando-se, aos 23 anos de idade, amigo do italiano Guillaume Apollinaire, já então um renomado escritor, crítico de arte e líder das vanguardas artísticas francesas, autor do manifesto Cubista e criador da palavra “Surrealismo”, entre outros feitos.
A amizade com Apollinaire e a convivência com o instigante e sedutor círculo de artistas da vanguarda parisiense não impede, contudo, que Cendrars empreenda viagem aos Estados Unidos, onde publica seu primeiro poema longo, “Les pâques à New York”(1812). Esse poema, ao lado de “Transsibérien” e “Le Panama ou Les aventures de mes sept oncles” (1918) contribuirá para que sua figura seja definitivamente associada ao movimento da poesia moderna, colocando-o, pela natureza de sua “narrativa de viajante”, como uma espécie de precursor da Geração Beat, em especial do poeta maior desse movimento, Allen Ginsberg.
Deflagrada a Primeira Guerra Mundial em 1914, Cendrars se apresenta como voluntário na Legião Estrangeira. A experiência heróica se mostra trágica: durante um combate renhido no front, Cendrars é gravemente ferido, vindo a perder o braço direito. A partir desse infortúrnio ele resolve investir definitivamente em suas habilidades de escritor e poeta, atuando também como editor e designer gráfico.
Sediado em Paris após o término da Primeira Guerra Mundial, o poeta conhece um casal de artistas brasileiros que transita pela cidade: Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. O ano é 1923 e a amizade e empatia que se estabelecem entre eles faz com que o suiço desembarque no Brasil já no ano seguinte, mais precisamente em São Paulo, onde torna-se amigo de outros personagens do movimento modernista brasileiro, entre os quais o pintor Di Cavalcanti e o escultor Victor Brecheret.
Apaixonado pelo Brasil e mantendo viva a inquietude de sua alma, Cendrars, em companhia de alguns modernistas, efetua uma viagem de reconhecimento pelas cidades históricas de Minas Gerais, onde descobre, encantado, a obra barroca de Aleijadinho, para ele a tradução de uma visão artística genuinamente brasileira.
De volta a Paris, publica “Au Sans Pareil”, ou, como ficaria conhecido entre nós, o “Manifesto do Pau Brasil”, obra do seu parceiro e amigo Oswald de Andrade, que o homenageia na dedicatória: “A Blaise Cendrars, por ocasião da descoberta do Brasil”.
Blaise Cendrars, a partir de então, resolve ampliar ainda mais seu fazer criativo, seja através da publicação de romances, seja por meio da realização de reportagens especiais, atividade que o leva a estabelecer contato com uma gama diversificada de personalidades, incluíndo os astros e estrelas da sétima arte, uma de suas predileções. E é nessa condição de fã e amigo de atores, atrizes, diretores, técnicos e produtores que ele chega em Hollywood, a “Meca do cinema”. O ano é 1936 e a ideia inicial é fazer uma grande reportagem sobre a cidade e a natureza da indústria cinematográfica.
Confeccionado na inseparável máquina de escrever que acompanha Cendrars mundo afora, o relato – logo transformado em um livro – tem início já no prefácio da obra, onde o autor lamenta a impossibildade de encontrar seu velho amigo Charles Chaplin, a quem chama de Carlitos – “Carlitos estava muito nervoso, quando cheguei, porque às vésperas da estréia de seu último filme, e, à minha partida, ainda muito nervoso porque era o dia seguinte da estréia, na qual se sentiu, como declarou no rádio, ‘desconfortável como na cadeira elétrica’”.
A frustração também se dá em não poder entrevistar a musa de sua juventude, a estonteante Louise Fazenda, “…por quem tenho uma antiga paixão que data do tempo do cinema mudo”, confessa, informando ainda que o encontro não foi possível devido ao fato da atriz ter “… acabado de dar à luz, aos quarenta e dois anos!”.
Ainda no prefácio, Cendrars enumera, de maneira sarcástica e descontraída, os tópicos que ficaram de fora do livro: o perfil das estrelas masculinas e femininas, um capítulo sobre a vaidade dos produtores, outro sobre os diretores e os riscos da profissão; um dedicado aos financistas, aos figurantes e aos mais de dois mil escritores contradados pelos estúdios já naquela época; a ausência de uma abordagem sobre os gângsters, as drogas, a prostituição e os divórcios dos astros e estrelas – “Nunca compreenderemos nada da história de Hollywood se ignorarmos as extravagâncias sexuais que podem vicejar nessa estufa quente…”, diz – e por aí segue.
Convém explicar que a Hollywood que recebe Cendrars em 1936 ainda é uma cidade por demais jovem no mapa do mundo; na verdade, mal ultrapassou os 20 anos de idade, devendo sua existência ao movimento de expansão da indústria cinematográfica norte-americana em direção a Costa Oeste, isso por conta de questões que envolviam desde aspectos ligados a logística das produções – as filmagens na Costa Leste (leia-se Nova York) eram constantemente paralisadas devido a chuvas e nevascas, algo que não existia nas terras ensolaradas da Califórnia -, até as acirradas disputas e perseguições econômicas e patrimoniais promovidas pelo “trust” formado por Thomas Edison, que fazia o papel de vilão da história.
Não é à tóa, portanto, que Cendrars batiza o tópico que abre o primeiro capítulo com o título de “A mais jovem capital do mundo e a capital da juventude”; era essa, de fato, a condição daquela que também ficou conhecida como a cidade dos sonhos e da perdição, Hollywood.