Certa ocasião, o cantor e compositor Belchior afirmou, em entrevista para a revista cultural cearense intitulada O Saco, que o mundo precisava de mais libertação e de menos teologia. Portanto, a sustentação que tal afirmativa encerra diz respeito a um contexto libertário na vida. Ou seja (e por extensão, em uma interpretação possível): gostaria o bardo de Sobral que a existência humana fosse pautada nos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, e sem grandes preocupações com o porvir…
Ledo engano… O mundo exige, mais do que nunca, planejamentos mil, esforços variados e construções diversas (entra aí a questão do estudo!) sobre o que se produz – ou o que se quer produzir – no trabalho. Todo esse contexto exigente solicita muito de nossa capacidade humana de pensar, e também de realizar, questões que no Brasil não podem ser explicadas e ancoradas apenas pela meritocracia. E, não bastasse a violência atual presente em torno da precarização do trabalho, ainda há a questão – que surge como resultado dessa dinâmica perversa – da manutenção do status quo e da tentativa de perpetuação de uma sociedade excludente e escravocrata em vários sentidos.
Aprofundando: há pouco, um dos ideólogos de uma igreja católica mais voltada aos humildes faleceu. Trata-se de Dom Pedro Casaldáliga, espanhol/catalão de nascimento e brasileiro de coração, uma das “personas” mais instigantes que este articulista conhece na construção de um mundo civilizado e mais humano. Dom Pedro foi daqueles sacerdotes vocacionados para o próximo e para os necessitados, com um destacado sentimento de empatia em suas ações.
Assim ele, nos anos 60 e 70 do século XX, analisador de uma América Latina dominada por ditaduras sangrentas e imbricada em processos excludentes e perversos, foi um dos artífices da Teologia da Libertação no Brasil – ao lado de figuras como o cearense Dom Hélder Câmara, Leonardo Boff, Frei Betto, Paulo Freire e outros. Nesse sentido, colocou a igreja no mundo para compreender as dificuldades presentes e atuar no entorno das questões sociais, econômicas e políticas. Seu objetivo: fazer com que a tese católica fosse uma aliança vital na proclamação da justiça, da paz e, sobretudo, da igualdade social.
Em todo esse quadro pode ser aposta a questão da Arte. Que pode juntar, entre seus vários percursos e fundamentações, uma fusão no encontro entre a fé, a música, a poesia e o texto. Esta é a grande característica da Missa dos Quilombos, realizada pela primeira vez na capital pernambucana em 22 de novembro de 1981. Há relatos acadêmicos que sustentam ter sido uma apresentação para cerca de sete mil pessoas, tendo ocorrido em frente à conhecida Igreja do Carmo, local que, em fins do século XVII – mais precisamente em 1695 – ter servido para expor a cabeça de Zumbi dos Palmares fincada no alto de uma estaca.
Casaldáliga, para composição do conceito do trabalho, foi instigado por Dom Hélder. Assim, o bispo espanhol convidou o poeta Pedro Tierra para que, em conjunto, produzissem o texto. Por sua vez, o carioca – e mineiro de coração – Milton Nascimento fez a música. A obra terminou por destacar um sincretismo entre as musicalidades religiosa e brasileira, envolvendo-as numa tessitura africana rítmica, cultural e antropológica. Destaque-se ainda que o espetáculo surgiu como resultado de pesquisas no entorno da escravidão negra, e foi gestado como continuidade da Missa da Terra Sem Males, a qual tinha como tema a questão indígena.
A Missa dos Quilombos considera a questão escravocrata como cerne na história deste país. Além disso, ela tematiza igualmente a política racial brasileira daquele momento. Em torno do primeiro aspecto, há a compreensão de que o Brasil foi um dos últimos países que aboliram a escravatura, pressionado que foi pela política inglesa de criação de uma classe social brasileira que consumisse os produtos britânicos. Centrando foco no tema, a literatura especializada afirma que a base social da conjuntura de então, no Brasil, passou a reunir o trabalho livre, a entronização da cidade e do estado de São Paulo – desbancado o Rio de Janeiro – como novo polo desenvolvimentista, e uma forte imigração de milhões de pessoas vindas de outras partes do mundo a partir de 1880, as quais traziam muita mão de obra.
E, em comunhão com o citado, destaque-se o que sustenta o sociólogo Jessé Souza. Ele, no livro A Elite do Atraso, afirma que a escravatura brasileira pode ser intitulada como o nosso berço. E ele ainda assevera, em torno do mesmo tema, a constituição de novos escravos nos tempos atuais. Ou seja, Souza observa que há novos representantes da classe escravocrata, abandonados que foram ou, então, jogados numa competição social para a qual não estão preparados – vide o caso do ENEM e a questão do ensino público!
A Missa do Quilombo, portanto, malgrado já ter algum tempo que não é apresentada – houve uma apresentação em 2002, no Brasil, além de outra, em 1997, na cidade peregrina de Santiago de Compostela, situada na Galícia, no noroeste espanhol, e que inclusive contou com as presenças de Milton Nascimento e de Flávio Venturini – representa uma possibilidade de se compreender o passado, questionar o presente e de se remeter ao futuro um problema de dominação econômica.
O intuito basilar desta obra sincrética – a missa/espetáculo – é tentar desvelar o mundo em torno de uma concepção social que seja crítica, para que as sociedades futuras – eu sei que o termo é genérico, mas vá lá que seja… – tenham uma significância renovada e, sobretudo, menos colonizada e menos imatura. Justifica toda essa perspectiva a seguinte problematização, lançada por este texto a partir de outras leituras: o Quilombo no Brasil é atual. Basta ver as periferias das grandes cidades brasileiras, a precarização das relações trabalhistas, a questão indígena e os desmatamentos na Amazônia, a contemporaneidade dos casos de racismo, a presença do negro na televisão, quase sempre em posições subalternas, a contínua – e já histórica – falta de saneamento básico nos bairros populares…
Após todas essas considerações: longe vão, portanto, na visão deste pesquisador, os dizeres de Belchior. Pois impossível se faz a construção de um mundo melhor apenas numa perspectiva libertária. É preciso luta, ainda que sem armas. A luta do amor, que doa a outra face, mas que faz isso consciente e se percebendo na relação. Tal perspectiva se manifesta em “inteireza humana”, expressão de Boff, e em possibilidades de crescimento transformador, o qual traduz a ideia de libertação – “a ação de se libertar”, e que exige processos práticos e construções intelectuais e de classes (“quem só espera nunca alcança”), e não obrigatoriamente de teologia – apesar desta poder estar no radar.
Pois muito bem! Que fique devidamente esclarecido o significado de tal crescimento transformador! Na visão deste articulista, é aquele que equaciona o mundo exterior e o mundo interior, trazendo equilíbrio e vontade de vida em plenitude e com esperança. Afinal, neste Quilombo chamado Brasil, como bem disse o genial Belchior: viver é melhor que sonhar…