A simplicidade certamente é um dos traços mais polidos da vida. No cinema, ela se potencializa por meio da vontade que a realização tem a exprimir, quanto pelo significado que a obra, em sua forma e conteúdo, repassam uma vez que o filme se lança no mundo. Esse traço singular foi aquele com o qual Sofia Coppola pintou seu inestimável “Um Lugar Qualquer” (2010).
O filme conta a estória de Johnny Marco (Stephen Dorff), ator com uma carreira em ascensão mas que ao mesmo tempo aparenta estar num relativo processo de crise existencial. Quando sua ex mulher sofre um colapso nervoso, ela deixa sua filha de onze anos, Cleo (Elle Fanning), aos cuidados de Marco. Juntos, pai e filha passam um período de tempo hospedados no hotel Chateau Marmont.
Assumindo um singular modelo de produção que se apresenta obliquamente às comédias americanas tradicionais, o então quarto longa metragem de Sofia ousa dentro dos limites que a obra permite. E essa contra posição se atesta por meio do sentido e da forma fílmicas adotadas pela diretora. Olhando-a por esse prisma, a obra se amplifica. Expandindo-se em diversas direções. Uma delas é justamente sua forma.
E isso porque Um Lugar Qualquer é trabalho que se materializa pela nossa percepção. Em seu prólogo, o longa nos dá um plano fixo de uma pista no deserto estadounidense enquanto a Ferrari de Marco transita em círculos velozmente. São cerca de dois minutos e meio desse plano ao passo que na sua forma entendemos toda a premissa do filme: uma estória sobre busca, mesmo que ela se dê em “círculos”.
Assim, é nessa estrutura em circuito fechado que embarcamos na trama. Mas para que esta imersão ocorra, o entendimento ou a mínima predisposição do sentido de extracampo se exige do espectador. Na cinematografia, tal conceito surge como uma abertura do filme nas suas dimensões espaciais (enquadramento) e absoluta (a percepção da imagem¹ ). E também rompendo os próprios paradigmas vigentes, se abrindo ao todo do universo fílmico.
Uma vez que o cinema apresenta em seu cerne, apenas uma parcela da realidade, a outra metade do plano ou as partes desses planos que não estão visíveis aos nossos olhos, se completarão pelo olhar que lançamos a tudo o que na forma fílmica está contido mesmo naquilo o que está presente mas não se ouve ou se vê. Enquanto espectadores, Um Lugar Qualquer nos convida a participar daquilo o que Jean-Louis Comoli (2006) chamou de “desvendamento da cena”.
Aqui, somos convidados a percebermos o que do filme se abre na medida em que também notamos o real que ele institui. E em termos de técnica, o longa nos aponta a aferição de uma gramática cujos planos tendem a se repetir em termos de semelhança de ações cotidianas. Seja ao vermos Marco se esforçando para não molhar o gesso durante um banho; seja no seu enlevo ao ver o show particular que duas dançarinas de pole dance fazem na suíte do mesmo ator.
Tal repetição nos sugere um forte anseio de Sofia em expor todo o vazio ou detalhamento do cotidiano da vida. Já que Marco, por vezes, sequer consegue explicar o que faz enquanto ator. No exercício de realização, a autora dá um indício e diz: isso é uma parte do show business. Mas também é uma parcela considerável daquilo o que o cinema moderno é. E esse certamente é um ponto central do nosso filme.
Falamos de uma construção, não apenas na estética, mas no sentido do filme. Com seus personagens por vezes intransponíveis; por vezes tão visíveis e simples de se perceber. E juntos dessas personagens ambarcamos numa reflexão paralela acerca dos próprios sentidos das nossas vidas. Assim, Coppola não apenas revisita o estimado Neo Realismo Psicológico de Michelangelo Antonioni (1912-2007), como realoca a posição do cinema de comédia, que também passa a ser drama existencialista.
Porque “Um Lugar Qualquer” nos é uma prova de que tudo o que for vontade no fazer cinematográfico assim o será. Bastando que a ideia apresentada pelo realizador não esteja presa ao fantasma da subestimação do entendimento espectatorial. A empatia com as personagens ou com a mensagem da estória em diferentes momentos estarão em cheque. Como um risco que em nenhum momento parece fugir do controle da direção. Como num fluxo que reforça aquilo o que de fato importa: o fortalecimento dos laço com aqueles a quem amamos de verdade.
¹ DELEUZE. Gilles. In. AUMONT. Jacques. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. 2003.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Somewhere
Gênero: Drama, Comédia
Tempo de duração: 97 minutos
Ano de lançamento (EUA): 2010
Direção: Sofia Coppola