Um Lugar ao Sol: E um estudo sobre a miopia da elite brasileira

Em 2006, o realizador pernambucano Gabriel Mascaro iniciou um projeto de documentário cujos personagens seriam moradores de valorizadas coberturas em prédios localizados à beira mar de diferentes cidades brasileiras. O contato se deu a partir de um curioso livro que cataloga a elite e pessoas influentes do Brasil. Na lista, foram identificadas 125 coberturas. Apenas 9 concordaram ceder entrevista. Assim, deu-se a realização do incomparável “Um Lugar ao Sol” (2009).

Por meio de diálogos com os proprietários destas coberturas no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, o filme explora a mentalidade social e cultural da elite e o fenômeno da ‘verticalização’ da paisagem urbana brasileira. Por essas características, esse é uma obra sobre altura, status e poder. A distinção desse trabalho, entretanto, vem mais da perícia e sutileza nas abordagens junto a cada uma das figuras que dão seus depoimentos acerca dos seus modos de vida e crenças pessoais. É ai que a viagem se inicia.

Juntos, esses personagens formam, com exceções mínimas, um mosaico bizarro de um recorte daquilo o que poderia ser uma escopo da subjetividade elitista brasileira. Esse é um ponto importante porque Gabriel em nenhum momento tenta “desubjetivar” seus depoentes. Ao contrário, é na liberdade concedida a estes de falarem e expor suas falas abertamente que o longa se fortalece.

Ele, acertadamente, decide não ir para um enfrentamento direto com os entrevistados. Antes, isso seria ingenuidade e daria vazão para que o próprio espectador sofresse uma negativa influência do que se conhece por discurso enviesado. E se pensar essas estruturas no cinema de ficção – vide Polícia Federal – A Lei é para Todos(2017) – já denota grandes problemas, quiçá no documentário. Como um realizador consciente das suas posições, Gabriel sustenta uma abordagem, claro, mas em nenhum momento manipula o discurso das pessoas que estão ali. o que garante que o filme, de fato, aconteça.  

Por meio de diálogos com os proprietários de coberturas no Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, o filme explora a mentalidade da elite brasileira e o fenômeno da ‘verticalização’ da nossa paisagem urbana.

Por entender que seu trabalho depende dessa contrapartida, o diretor vai ao encontro dos entrevistados. Importantíssimo colocarmos aqui a perspectiva do cinema compartilhado de Jean Rouch*, uma vez que, assim como defendia o cineasta e antropólogo francês, Gabriel parte da ideia de que a representação desse outro que se coloca diante da câmera não se desenha a partir de uma visão outorgada pelo cineasta. A construção final que o filme dá a ver é montada por esse mesmo sujeito fílmico em toda sua contradição discursiva.

Mas como Um Lugar ao Sol dá isso na prática? Colocando a câmera, literalmente, na mão dessas pessoas. Quando uma das entrevistadas capta imagens internas e externas da cobertura onde vive, ela mesma traça o perfil da sua família pelo olhar impresso nas imagens e na fala que as acompanha sincronizadamente. Assim, Gabriel adianta já o dispositivo que veríamos anos depois quando do lançamento do seu quarto documentário, Domésticas (2012)**.

O “código de honra” que o diretor estabelece com essas pessoas foi o que garantiu o exercício de realização. Mas repito, enquanto cineasta, seu ponto de vista era claro: dar a ver o olhar de um recorte da elite brasileira em toda sua contradição. A falta de bom senso, a ignorância, alienação, e a destituição de um sentimento de alteridade, misturado com um pedantismo ignorante e infundado que desagua num bizarro quadro de miopia social destas pessoas acerca da realidade a sua volta, são o sentido máximo que tornam o documentário tão impressionante.

O filme parte da ideia de que a representação desse outro colocado diante da câmera não se desenha a partir de uma visão outorgada pelo cineasta.

Na casa do “inimigo”, retomando agora a teoria de Jean-Louis Comolli***, Um Lugar ao Sol entretanto não cede lugar ao reacionarismo. A crítica social está ali em suas 1 hora e 11 minutos, mas não escritas em negrito. É preciso ler as imagens discursivas desses depoentes. Mas também ler as entrelinhas das imagens de apoio, por exemplo. Elas são importantíssimas não como pano de fundo, mas para agir como a fala implícita da direção do filme. A plantinha que, na primeira sequência do longa, resiste ao soterramento por uma placa de aço é uma janela interpretativa de uma riqueza imensa.

É o filme nos dizendo: olhem, assim como essa pequena planta que insiste seguir em pé ante a opressão que vem do alto em sua verticalização, o Brasil continuará existindo em um cenário onde o horror do contraste social é real. Esse horror se materializa na metáfora visual do cair da noite por sobre imensas sombras de um sol distante. Bem como da trilha sonora orgânica composta por cordas que sempre nos dá o entendimento de que algo ruim ocorre neste País. A realidade que, em determinado trecho do filme, um dos depoentes mesmo reconhece que a “realidade onde ele vive não é a realidade do Brasil’.

Um lugar ao Sol é um filme difícil de se ver. Porque nos custa estarmos diante de uma ignorância que é matéria do real captada pelas lentes da câmera. “Este documentário é uma coisa positiva. As pessoas fazem documentário apenas sobre a miséria e matanças”, diz um dos depoentes.

O que ele, e os outros 9/10 dos demais entrevistados não perceberam, é que, na verdade, a miséria que o filme documenta é aquela que materializada pela visão da classe média/alta brasileira atualmente incapaz de se olhar e olhar para o outro subjetivamente. E enquanto parte da nossa história for essa, continuaremos a nadar sobre este complexo poço personificado por uma severa desigualdade social. Isso é o que Um Lugar ao Sol e em maior medida, o cinema de Gabriel Mascaro, em toda sua grandiosidade nos dá a ver.

* Jean Rouch (1917-2004) foi um cineasta e antropólogo francês. É considerado um dos fundadores do cinéma-vérité na França, cuja ideia compartilhava a estética de um cinema direto. Sua prática como cineasta por mais de 60 anos caracterizou-se pela prática da antropologia compartilhada.

** Em Domésticas (2012), sete adolescentes assumem a missão de filmar suas empregadas domésticas por uma semana e entregar as imagens ao diretor, Gabriel Mascaro, para a realização do filme.

*** Jean-Louis Comolli (1941-) é um crítico, ensaísta e cineasta francês. Foi editor-chefe de Cahiers du Cinéma de 1966 a 1978, período em que escreveu influentes ensaios e estudos de cinema que ajudaram a repensar o exercício da cinematografia como um local para a produção e manutenção da ideologia do Estado  durante o período da Revolução Cultural de 1968.

FICHA TÉCNICA

Título Original: Um Lugar ao Sol

Tempo de Duração:  71 minutos

Ano de Lançamento : 2009

Gênero: Documentário

Direção: Gabriel Mascaro

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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