Pelas lentes do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, com sua grande obra Casa Grande e Senzala, temos a oportunidade de compreender um pouco mais o processo de formação do Brasil. A partir de sua terra natal, Freyre estudou, sob a influência da antropologia cultural norte-americana as características socioculturais dos povos formadores da sociedade brasileira, valorizando a mestiçagem, antes depreciada por outros autores brasileiros, e colocando em relevo a contribuição do negro, até então ignorada.
Ele parte do argumento econômico para explicar a organização social. O sistema de produção material estava estruturado numa economia escravista agrícola de monocultura latifundiária. A Casa-Grande era o símbolo do poder desse sistema, comandada pelo senhor do engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo: o suor do negro sustentava os alicerces da Casa-Grande dando-lhe uma consistência de quase fortaleza. Ela servia simultaneamente de cofre e cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, as mulheres, o capelão que fundamentariam a colonização portuguesa. Esse patriarcalismo não era exclusividade da região nordeste, podia ser encontrado no sudeste e sul do país, nas plantações de café, por exemplo. Assim, as famílias que se assentaram no Brasil fundaram espaços públicos sob o seu comando e consolidaram seu poder criando redes de relações e influência: o Estado aparece como adjuvante por trás destas famílias que se denominavam a “nobreza da terra”.
Os senhores de engenho, homens extremamente ricos e poderosos, casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens sobrinhas, exagerando assim o sentimento da propriedade privada: as heranças eram sempre disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Esses senhores passavam a maior parte do tempo deitados na rede, ora cochilando ora copulando. Não precisavam sair da rede para dar ordens aos negros, bastavam gritar. A “solidariedade” existente nesse sistema social era verticalizada baseada na dominação econômica, política e cultural.
Dito isto, pensemos: diferentemente do escravismo econômico tropical, que formou corações e mentes autoritárias de brasileiros e brasileiras ao longo dos séculos, condicionando o comportamento de muitos ainda hoje que no tempo presente constroem e defendem com unhas e dentes versões atualizadas de suas casas-grandes contemporâneas, o que seria a democracia moderna?
Antes de tudo ela é o reconhecimento que a humanidade faz de si mesma, percebendo que pessoas e coletividades são capazes de ser agentes de suas histórias, como sujeitos livres e iguais, tendo o direito de agir na qualidade de criadores de suas vidas individual e coletiva no exercício de sua liberdade positiva, e não somente tendo o direito de serem libertados dos grilhões que os aprisionam, a assim chamada liberdade negativa. É um modo de organização da sociedade cuja economia de mercado é a forma econômica, a secularização é sua expressão cultural e sua organização política sucede pela existência de um conjunto de regras fundamentais que estabelece quem está autorizado a tomar decisões coletivas e quais procedimentos deverão ser adotados, implicando a autonomia do sistema político e jurídico, com a participação de um maior número de pessoas possível na tomada de decisões, seja direta ou indiretamente – por intermédio da representação política – nas quais as escolhas a serem feitas devem sempre levar em consideração a realidade.
Além do mais, uma cultura democrática se alimenta pelo esforço da combinação entre diversidade e unidade, entre a liberdade individual e a realização de projetos coletivos tendo em vista uma livre e justa convivência comum. Não existe democracia se esses dois elementos não forem respeitados e articulados. Assim, a democracia não pode ser definida apenas pelas suas dimensões representativa e participativa, articuladas na busca de formação de consensos políticos, mas inclui também o reconhecimento e o respeito mútuo das diversidades culturais e sociais. Isto requer o aprendizado de uma convivência com as diferenças em um mundo que seja edificado pelo respeito recíproco e aberto às diversidades. Tanto a unidade, sem a qual a comunicação e uma convivência pacífica se tornam impossíveis, quanto a diversidade, sem cuja presença não se poderia pensar numa efetiva liberdade criativa e autônoma das pessoas, não devem ser sacrificadas uma à outra. Este parece ser o grande desafio democrático.
Como bem lembra Zygmunt Bauman, a universalidade da humanidade é o horizonte pelo qual qualquer política democrática precisa se orientar para ser significativa. A universalidade da humanidade não se opõe ao pluralismo das formas de vida humana; mas o teste de uma verdadeira humanidade universal é sua capacidade de dar espaço ao pluralismo e permitir ao pluralismo servir à causa da humanidade, que viabilize e encoraje a discussão contínua sobre as condições compartilhadas do bem para todos os humanos.
Sendo assim, a passagem de uma cultura do tipo escravista, como foi (e ainda é) a nossa, para uma sociedade democrática não pode se dar sem uma mudança de estruturas e mentalidades. É preciso persistência, capacidade de luta e sensibilidade política.