Apesar de todas as notícias falsas plantadas pelos negacionistas, a população de Licânia acorreu às filas de vacinação. Para aqueles assustados pela possível presença do Fantasma de Licânia, a vacina foi à casa deles.
Um detalhe interessante: o companheiro Acácio se transformou em garoto propaganda da campanha “Vacina ou morte!”. Nos cartazes, Acácio aparecia ladeado pela jumentinha Sancha, tendo aos seus pés o indefectível Nabuco.
Com a cobertura vacinal superando a marca dos noventa por cento, a cidade voltou a sorrir, sem máscara. E, pouco a pouco, Licânia foi retornando ao seu ritmo costumeiro: os bêbados na pedra do Mercado, as pias filhas de Maria nas missas, as fuxiqueiras a tecerem novos casos contra as vidas alheias… Enfim, a velha e revelha pasmaceira licaniense.
Na abertura das novenas da padroeira, padre Araquento orou pelo fim da pandemia e pelas almas daqueles que se foram, levando os presentes às lágrimas. Ao final, pediu uma salva de palmas para os “heróis da saúde”. Mas, quando chamou os valorosos acacianos para o altar, correu um pé de vento que cobriu todas as ruas com uma densa nuvem de poeira.
Falam os mais supersticiosos que tal fenômeno foi gerado pela carreira do Fantasma a sumir no rumo do Serrote da Rola.
Ao assentar a poeira, a igreja matriz estava totalmente vazia. Melhor, apenas com seus santos e santas. De olhos esbugalhados, por presenciarem tantas loucuras naquele chão.
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— Para onde você vai, Companheiro Acácio?!
Acácio, montado na jumentinha Sancha, corre os olhos pelas ruas, antes de anunciar:
— Amigo Clauder Arcanjo, confesso que cansei. Com razão ou sem razão, seguirei sem rumo certo.
Foi interrompido pelo bichano Nabuco:
— Shii…. Sh… Shizzz… miau!
— Grato, caríssimo Nabuco. Você também foi um valoroso companheiro. Entendo que você deve ficar com esse escrevinhador de província. Ele está lhe devendo uma novela à altura dos seus dotes artísticos. Cobre-o — respondeu Acácio, como sempre, me provocando.
Ao perceber que me encontrava embargado pela emoção, Nabuco subiu ao meu colo, lambendo-me a face tristonha.
Ao meu lado, também se encontravam Lourenço, Peditão, Pasmácio, Gazumba, padre Araquento, Lau e, mais ao canto, o nosso proto-filósofo João Américo.
— Mas, Acácio, eu ainda nem terminei esta novela. Você…
Antes de concluir, Acácio cortou a minha fala:
— Você e eu bem sabemos que A Razão de Acácio é uma trama sem fim. Adeus!
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O sol se punha na várzea coberta pelas carnaubeiras e pelas oiticicas. No lusco-fusco do cair da tarde, Licânia se recolhia para mais uma noite. Eu, tristonho, ouvindo o passaredo e o repique do sino da Matriz de Sant’Anna, mergulhava numa melancolia que nem sei descrever. Deitado aos meus pés, o bichano Nabuco, silenciosamente fiel.
De repente, alguém bate à porta. Levanto-me e, ao abri-la, não vejo ninguém. No chão, uma carta. Ao lê-la, meu corpo se vê tomado por um assombroso arrepio.
No céu, o voejar de um rasga-mortalha faz com que me benza seguidas vezes.
— Valei-nos, Senhora Sant’Anna!
Mas isso já é trama para um novo livro.