A religião é uma das expressões mais antigas e universais do espírito humano. É um fenômeno complexo no sentido de que é tecido por várias dimensões que compõem a existência humana. Além de pertencer ao campo dos estudos teológicos, históricos e sociológicos, também é assunto importante para um grande número de indivíduos, consequentemente matéria de natureza dos estudos psicológicos como, por exemplo, o conceito de “numinoso” (uma experiência emocional despertadora, que vai além da escuta da voz da consciência, mas é encontrada em eventos, objetos, fatos, pessoas) desenvolvido pelo teólogo luterano alemão Rudolf Otto (1869-1937).
Carl Jung (1875-1961) em seus estudos de psicologiaanalítica utiliza o referido conceito, segundo o qualnuminoso é a existência ou um efeito dinâmico não causado por um ato da vontade (arbitrário), podendo ser propriedade de um objeto visível, ou influxo do invisível, que produz uma modificação especial na consciência. Por exemplo, segundo Jung, em seu livro “Psicologia e Religião” (Editora Vozes), a Igreja Católica ministra os sacramentos aos crentes com o objetivo de conferir-lhes os benefícios espirituais que comportam. Com tal ritual acredita que os sacramentos contêm a presença da graça divina pelo fato de haver sido instituído pelo seu Fundador.
Para o teólogo presbiteriano e educador brasileiro Rubem Alves, o múnus da religião consiste no esforço de pensar a realidade a partir da exigência de que a vida individual e social faça sentido, na busca de respostas ao menos a três perguntas básicas: quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Se por um lado a ciência e a tecnologia avançaram decisivamente construindo um mundo no qual não é necessário invocar entidades sobrenaturais para explicar o seu pressuposto teórico, seu escopo metodológico e suas descobertas (um médico ou um biólogo não precisam invocar Deus para explicar a pandemia do Covid-19, nem sobre o tratamento da doença), a religião aparece no momento em que os recursos técnicos e científicos se esgotam não conseguindo evitar, por exemplo, a dor batendo à porta pela morte de uma pessoa querida, nem tampouco explicar sobre o seu destino final a partir do seu desaparecimento.
Na busca de conferir sentidos para sua existência, os humanos por meio de sua cultura criam objetos utilizando-se da matéria, e com a palavra exercem o seu poder de dar nome aos artefatos culturalmente produzidos. Por exemplo, uma pedra é concreta e visível. Mas no momento em que um grupo de pessoas coligadas entre si lhe dá onome de “altar”, a palavra torna-se “carne viva” aos olhos dos seus integrantes; por meio do “milagre” da pedra transformada em “altar” pelo poder da palavra expressa pelo grupo coeso, todos começam a vislumbrar conexões invisíveis que as ligam ao mundo além-do-físico, abstrato e imaginário, de seres extraterrenos poderosos.
Eis o primeiro efeito sociológico da religião: ligar as pessoas entre si, dando-lhes uma identidade específica enquanto grupo de fiéis que compartilham uma fé conjunta em um mundo imaginário. É, portanto, entre outras coisas, um fenômeno social com consequências na vida dos indivíduos e dos grupos, em suas formas de construir o mundo concreto, suas leis e suas instituições, colocando em movimento o longo processo civilizador.
No dia 20, o Papa Francisco em audiência geral, refletiu em sua catequese habitual (aprofundamento da doutrina evangélica) sobre o capítulo 17 do evangelista João, cuja centralidade repousa na oração da unidade dos cristãos, motivado pela semana de 18 a 25 de janeiro dedicada a invocar ao Deus cristão o dom da unidade *“a fim de superar o escândalo das divisões entre os crentes em Jesus”*. Segundo o Papa, a unidade é o sonho de Jesus: “que todos sejam um”.
Unidade não é um tema de fácil reflexão e realização. Sem precisarmos retornar ao tempo das fogueiras da Inquisição, o século passado teve a possibilidade de testemunhar pelo menos dois sonhos de unidade causadores de terror para a humanidade. O sonho da unidade nazista idealizado por Adolf Hitler e seu grupo de milhões de seguidores, com seus campos de extermínio de humanos tais como Auschwitz, na Polônia, que perpetravam todos os tipos de abuso e executavam humanos em câmaras de gás à base de monóxido de carbono; e o sonho de unidade stalinista, imaginado por Josef Stalin (1878-1953), com não menos seguidores e um sistema de campos de concentração de trabalhos forçados – Gulag – para adversários políticos e qualquer cidadão que se opusesse ao regime soviético de então.
Agora, o século presente está agonizando pela imposição de outro modelo de sonho unitário que penaliza a maioria da população do planeta para beneficiar os ultra-ricosgozadores das imorais e escandalosas mordomias, resultado da exploração mundial do pensamento único do sistema neoliberal, com seus campos de concentração espalhados pelo mundo, como ocorre com o campo estadunidense de Guantánamo, juntamente com o seu projeto de espectro total.
Pensar Unidade implica obrigatoriamente pensar Liberdade. Ambos compõem dois aspectos de uma mesma realidade a ser construída enquanto processos humanos.Para o pensamento cristão, a liberdade absoluta de Deus é a referência a partir da qual a Totalidade deve serinterpretada. Isto tem uma implicação determinante para se conceber a liberdade humana: seu fundamento ontológico, enquanto singularidade, personalidade e dignidade – de todo e qualquer indivíduo em sua originalidade insubstituível – está no fato de ser pessoa, imagem e semelhança de Deus, com o qual livremente pode manter um diálogo amoroso e íntimo. Aquilo que nas religiões dá-se o nome de “oração”.
Ao mesmo tempo, como um ser finito, o ser humano não pode esquecer que está no mundo concreto em relação e com outros seres. Portanto livres e simultaneamente ligados uns aos outros. Um ente totalmente livre, sem relações, radicalmente isolado, não é mais um ente neste mundo. Nem interioridade pura, nem exterioridade pura podem construir a Liberdade. Essa relação o fazdesenvolver sua capacidade de agir em um mundo por fazer. A liberdade implica sempre motivação, ou seja, deliberação racional a respeito dos motivos a favor ou contra a escolha de um determinado valor. Como lembra Hegel, “ali onde os seres humanos se dividem entre senhores e escravos não é possível emergir a liberdade verdadeira”. Se as mais variadas instituições, com seus regramentos, são provocadoras de desigualdades, discriminações e injustiças, elas são fundamentalmente escravizadoras, desumanas.
O sociólogo alemão Erich Fromm (1900-1980), em seu livro “O Medo à Liberdade”, ressalta que o autoritarismo aparece justamente como um mecanismo de fuga à liberdade, de renúncia à independência do próprio “ego” individual, buscando fundi-lo com alguém ou algo no mundo exterior, pois assim a fantasia de sentir-se amparado prevalece. Este mecanismo de fuga apresenta-se por meio da submissão ou da dominação de outrem. Para o autor, o mito de Adão e Eva, na origem da história humana, representa o primeiro sinal de escolha por meio do nascimento da razão, sendo este um ato de liberdade, onde o humano se vê fadado a ter de fazer suas escolhas e de arcar com suas consequências. Como ocorre agora no Brasil no qual a maioria dos seus cidadãos e cidadãs elegeu um político de extrema-direita para presidente: agora estão colhendo as terríveis consequências deste ato.
Segundo o Papa Francisco, a unidade sonhada por Jesus está fundamentada no amor que une e torna os humanos próximos uns dos outros. Para isso é preciso por de lado os particularismos a fim de promover o Bem Comum. O primeiro passo para promover o Bem Comum é o exemplo, são os fatos concretos, perseverando no amor e na oração, incansavelmente, andando sempre para frente.Orar significa lutar pela unidade para superar os preconceitos, para ver-se uns aos outros como verdadeiros irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Deus Amor.
Francisco concluiu sua reflexão dirigindo uma cordial saudação aos fiéis de língua portuguesa, dedicando suas orações dos últimos dias por todos que sofrem com a pandemia, de modo especial dos que vivem momentos de terror em Manaus, no Norte do Brasil.