Um cidadão brasileiro (I)

Era início da década de 1980. Eu integrava o elenco da peça A Noite Seca, de Geraldo Markan, com direção de Guaracy Rodrigues. Interpretava o Pe. Hipólito, Fernando Piancó o outro. No hall de entrada do Theatro José de Alencar, protestávamos com uma vigília contra a interdição da peça, exatamente no dia de sua estreia.

Enquanto isso, a significativa distância dali, no velho Centro de Convenções, um artista consagrado interrompia o script de seu show importante para ler nossos nomes a um auditório lotado, em plena Ditadura Militar. “Minha solidariedade aos artistas da peça A Noite Seca, impedidos de mostrar sua arte por uma Censura ridícula, burra, uma Censura sacana! Sa-ca-na!”

Seu nome: Caetano Veloso.

Pouco mais de uma década antes, mais precisamente em 1969, este mesmo artista, cujo gesto de respeito e solidariedade para com artistas anônimos dava bem a dimensão do seu caráter e do seu compromisso com a liberdade, após uma apresentação de despedida no Teatro Castro Alves, em Salvador, era obrigado a deixar seu país e partir para o exílio.

Da reclusão, dias antes, retirara inspiração para compor uma de suas obras-primas: “Quando eu me encontrava preso/na cela de uma cadeia/foi que eu vi pela primeira vez/as tais fotografias/em que apareces inteira/Porém não estavas nua/e sim coberta de nuvens”.

Jogando com a polissemia do léxico, diria pouco depois: “Eu agora também vou bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão melhores, pelo menos mais clássicas, e, de qualquer forma, outras”.

E, mais adiante, (…) Pela primeira vez eu me sinto num país exterior. (…) Eu atravesso as ruas sem medo, porque eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar. Mas eu estou aqui, e não tenho nada com isso”.

“I’m wandering round and round/Nowhere to go/I’m lonely in London…”

Eu vagueio pela cidade sem destino. Estou sozinho em Londres, diria em letra de música antológica, London, London, na qual expõe sua angústia diante da solidão londrina, ainda que em companhia da mulher Dedé Gadelha e do amigo, também perseguido pelo Regime, Gilberto Gil: “I know no one here to say hello”, Eu sei não existir ninguém a quem dizer Alô!

Menino dos olhos da Ditadura perversa, num sublime momento poético de compreensão da dor alheia, Roberto Carlos cantaria em homenagem ao compatriota ausente: “As luzes e o colorido/que você vê agora/ nas ruas por onde anda/na casa onde mora/você olha tudo e nada/lhe faz ficar contente/Você só deseja agora/voltar pra sua gente/Um dia a areia branca/seus pés irão pisar/E vai molhar seus cabelos/a água azul do mar”.

O dia chegaria em 1971, quando pôde voltar de vez para o Brasil. No ano seguinte, no mesmo teatro em que se despedira de seu país com um show entre revoltado e tristonho, daria, ao lado de Chico Buarque de Holanda, show memorável para festejar seu reencontro com o povo brasileiro. Agora, contudo, acostumara-se a ser um cidadão do mundo, “Você tem que saber que eu quero é correr mundo/correr perigo/Você não acredita/Eu quero é ir embora/Eu quero dar o fora/E quero que você venha comigo”.

Na irreverência do canto, não desmerecia seu povo, sua gente, sua Pátria. Em metáfora, atacava de frente a mesmice, o país acomodado ao estabelecido, de que emerge o conflito poético com a domesticidade imposta pelo regime: “Quando eu chego em casa/nada me consola/Você está sempre aflita/Lágrimas nos olhos de cortar cebola/Você é tão bonita/Você não está entendo nada do que eu digo/Eu quero é tocar fogo neste apartamento/Você não acredita/Traz meu café com suíta/eu tomo/bota a sobremesa/eu como eu como eu como/você”.

Poeta imenso, músico habilidoso, cantor e intérprete fora da curva, escritor de livros importantes, cineasta transgressor, animador do pensamento e das ideias, Caetano Emanuel Viana Telles Veloso faz 80 anos. Seu show de aniversário, ao lado dos filhos Moreno, Zeca, Tom, e da irmã Maria Bethânia, mal termina e já entra para a história dos grandes espetáculos da Música Popular Brasileira.

Num tempo de incertezas e escuridão, que alento é sabê-lo um cidadão brasileiro.

Fonte da imagem: https://bityli.com/vnFvAX

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica