Um Bonde Chamado Desejo é o título de uma obra prima da dramaturgia universal, escrita por Tennessee Williams, e nesta semana a peça surgiu em meus pensamentos. Me veio pela observância do pipocar de vários grupos da sociedade civil que começaram a se mobilizar em torno de uma questão tão cara e necessária, a defesa da democracia. No entanto, alguns grupos políticos partidários e representações destes mundos começaram a se posicionar contra ou no mínimo deslegitimar tais atos. Teria a sociedade civil em geral resolvido ingressar erroneamente em um bonde ou a política partidária se perdeu no desejo de suas viagens?
No mundo todo, e já há algum tempo, é possível perceber uma nova tomada de direção nos movimentos sociais e na política partidária. Bandeiras antes tão flamejadas, minguam pelos cantos das cidades à procura de apoiadores. Partidos pouco expressivos e sem direção ideológica se encorpam enquanto alguns tradicionais amofinam. Homens e mulheres cada dia mais ganham as ruas sem precisar da presença de grandes políticos nem de ideologias partidárias.
Movimentos transnacionais reverberam em diversos lugares, tão distantes quanto distintas são suas culturas e sua geografia. Na linha de frente não estão mais aqueles homens barbudos ou senhores de cabelos brancos, aqueles que ao chegarem em um protesto traziam consigo um portentoso número de asseclas e logo tomavam conta do espaço, ganhavam ligeiramente o microfone do carro de som ou o megafone. Aqueles senhores e às vezes, pouquíssimas vezes, senhoras, repentinamente escutavam o silêncio dos manifestantes para logo em seguida serem aplaudidos loucamente.
Hoje, na linha de frente dos movimentos que varrem as ruas pelo mundo, estão adolescentes como Greta, são forjados pela internet, acontecem em diversos lugares ao mesmo tempo, e carregam bandeiras menos ideológicas e mais conectadas com a realidade. Sim, são movimentos fluidos e dinâmicos, tal qual a vida atual. No entanto, carregam força e impactam diretamente nos objetivos intentados. Não se arvoram com grandes “combos” de defesa, são causas únicas, embora com entrelaçamentos maiores. Explico, uma manifestação em defesa do clima aglutina pessoas diferentes com demandas e defesas sociais diversas, no entanto, naquele momento é a questão climática que prevalece. Diferentemente dos movimentos partidários que sempre carregam uma série de questões, bandeiras do partido, quando às ruas saem.
Não pretendo fazer juízo de valor, se é melhor movimento A ou B, se é melhor partidos políticos ou manifestações voluntárias surgidas na sociedade, a questão principal é olhar para a realidade. Podemos dizer que o zeitgeist (espírito da época) aponta para uma conexão global através das mídias de comunicação. Estas por consequência aproximam pessoas diferentes, mas que possuem alguma característica em comum ou são empaticamente impactadas por uma mesma questão. Assim, gerar uma mobilização em torno de um tema ou fato passou a ser possível a partir de qualquer lugar do mundo, a qualquer hora e por qualquer pessoa. Algo pouco pensado a uma década, algo mais democrático do que todas as outras décadas.
“Eu sempre confiei na gentileza de estranhos” é uma fala emblemática da personagem principal de Um Bonde Chamado Desejo, Blanche DuBois. Na dramaturgia, a sentença é proferida no final da peça quando a personagem se entrega aos braços de pessoas estranhas que a levarão para um lugar distante das paredes que a assombraram. Hoje são estranhos no mundo inteiro que se importam com a causa negra norte americana. Sim, antes também havia estranhos do mundo inteiro a se importar, mas pela primeira vez na história da humanidade, a capacidade de mobilização é simultânea e com proporções nunca antes pensadas.
Estas mobilizações geram tanto impacto que é notório o número de empresas, de diversos segmentos, se engajando na causa e transparecendo uma imagem de solidariedade. Outrora, dificilmente perceberíamos tal atitude, ao contrário, o silencio seria o imperativo de quem se esquiva para não se comprometer nem perder espaço no mercado com opiniões e pessoas divergentes.
Talvez a preocupação original de tais empresas não seja a questão em si, mas a perda do seu ativo principal, seu público, seu cliente. O importante é que se posicionem, encorpem a teia que encadeia os mais diversos setores da sociedade e nisso criem uma malha firme em defesa de questões cruciais à sociedade. Extrapolando a frase de Blanche DuBois: estranhos que se engajem em nossas causas, independentemente de quais outros tipos de causas tenham, serão bem-vindos.
Preâmbulo feito, vamos ao caso brasileiro, menos urgente que o assassinato de George Floyd nos EUA, mas tão necessário quanto. Há frequente tentativa do presidente da República em testar os limites da democracia nacional e por consequência o esgarçamento do estado democrático e de direito. É notório o movimento ensejado desde o primeiro dia de mandato de submeter as instituições nacionais ao seu gosto, ao que acredita ser libertar o povo das tiranias ideológicas e da velha política. Já me detive a este tema em outros textos como “O Xadrez da Extrema Direita” ou “O Ovo da Serpente” e confesso, terei de retomá-los o mais breve possível.
Neste momento o importante é entender como a sociedade se comporta e como instituições, partidos políticos, movimentos sociais e sociedade civil em geral se movimentam. É possível perceber o Supremo Tribunal Federal apresentando suas cartas, dentro do ordenamento jurídico e dos procedimentos legais. É possível ver um congresso majoritariamente omisso, especulando como, quando e porque tomar posicionamento, enquanto seus líderes apenas tergiversam sobre o assunto. Também é possível ver uma camada consistente, ancorada messianicamente ao presidente e sem a menor capacidade de reflexão ou debate sobre seu comandante. E é possível observar a outra e maior parte da sociedade, que vive entre o misto de sobreviver a pandemia que assola o mundo e de alguma forma fazer frente às investidas do senhor que às vezes parece um projeto de Mussolini.
Em meio a tudo isso alguns setores da sociedade civil começaram a se mobilizar, torcedores de times de futebol rivais se uniram e foram às ruas, agrupamentos de atletas realizaram manifesto escrito, outro agrupamento com personalidades nacionais da arte, da cultura, da política partidária, da imprensa e outros segmentos lançaram um manifesto, grupos menores intitulados “antifascistas” se organizaram para ações e tantos outros provavelmente aparecerão. O que eles todo possuem em comum? O zeitgeist! Os mais antigos podem me perguntar: mas isso não aconteceu em outras épocas como nas “diretas já”? Eu diria que desta forma não. Estes movimentos rapidamente tomaram espaço, por exemplo: um manifesto lançado domingo, em menos de uma hora já recebia cem mil assinaturas. A velocidade da comunicação possibilita efeito exponencial na propagação. Hoje diversos movimentos mundiais já estão “antenados” na questão brasileira e começam a pensar em como se mobilizar para isso.
Hoje, acompanhando o espírito da época, a grande mídia percebe que esconder a realidade é muito mais danoso para sua saúde financeira do que era quando Boni manipulou o debate presidencial entre Lula e Collor. Mesmo tendo uma grande relevância na formação cultural e de opinião das pessoas, estas emissoras perdem força com um outro movimento deste nosso momento, as fontes de informações independentes. No Brasil a situação ainda é pois as grandes emissoras, exceto uma, se colocaram na encruzilhada de desagradarem a todos. Claro, foram anos investindo em informações alinhadas a interesses que não a transmissão do fato real. Agora colhem, a preço bastante alto, os frutos plantados anteriormente.
Hoje os manifestantes que fazem frente ao avanço de um estado fascista, são de diversas naturezas, com perspectivas políticas (no sentido de ação humana, de construção coletiva) das mais distintas, pessoas desprovidas de representatividade partidária, pessoas que em comum se interessam apenas por uma causa, a que se quer combater.
Estamos em tempos, como sinaliza o sociólogo francês Alain Touraine, de um mundo sem atores. No mundo gente estranha aos cargos públicos ocupam espaços enquanto velhos representantes do povo sofrem uma crise de representatividade. Nada se constrói para um legado, nenhuma bandeira se fixa por mais do que algumas semanas e a cada dia um novo elemento provocador agita a sociedade. Entender isso é crucial para partidos políticos e seus baluartes, não entender é caminhar para ostracismo, penso eu.
Estes movimentos que começam a surgir no Brasil estão repletos de pessoas, mas com poucos atores. Pessoas que estão em lados totalmente opostos no que tange a outras questões verdadeiramente importantes de se debater. No meio deste amálgama, facilmente se encontrará pessoas que outrora se posicionaram contra a democracia e que fizeram vistas grossas por interesses próprios. Pessoas que, como diz o poema do Chaves: volta o cão arrependido, com suas orelhas tão fartas, com o osso roído e o rabo entre as patas.
Pessoas, até pouco tempo estranhas a esta causa, mas que agora se abrigam ali. Sem força para ser a voz ressoante, sendo parte de um todo. Isso cria uma esfera cheia de arestas em seu interior como no dilema dos porcos espinhos que precisam se aquecer no frio se aconchegando e sem correr o risco de se perfurarem. Notem, é a difícil missão de ser coletivo sendo distinto, de estar junto por uma única causa sem que esta venha carregada do combo político ideológico.
Negar estes movimentos que se unem por uma causa, mesmo sabendo de sua futura e inevitável separação, me parece uma atitude equivocada e que a curto e longo prazo minguará partidos e políticos. É preciso entender que a defesa da democracia não é um monopólio político de partido ou de seus representantes. Não é consistente a ideia de que esta bandeira pertence a um determinado segmento político nem que para defender este ponto é necessário incorporar todas as outras pautas.
Perder a capacidade de encarar a realidade e criar um mundo paralelo, construir uma imagem de si e acreditar que é isso o que as pessoas querem foi a saída para Blanche DuBois, todavia o seu final foi trágico. Não pegar o bonde por achar que maior é o desejo partidário pode ser o desfecho da peça, cairá o pano.