“São as flores, Pero, são as flores, / semântica sempiterna dos amores / (…) / com seus humores, / (…) / suas abelhas, seu burburinho, / suas galas, seu desalinho, / são as flores / com os seus desdéns e seus amores, / singelas, são perfumadas violetas, / e as mais sutis são filhas da luz com borboletas.” (Paulo Mendes Campos, em Carta a Pero Vaz de Caminha/Brasil brasileiro: crônicas do país, das cidades e do povo. Civilização Brasileira, 2000; págs. 45-46).
Ontem, a lembrança, ainda com bons resquícios de prodigalidade, levou a minha irrequieta alma – enquanto o já fragilizado corpo, em razão do tempo, do uso e dos efeitos danosos das comorbidades, dormitava na reconfortante rede de varandas – para um revivificante sobrevoo pelo passado de algumas décadas, repleto de alentadoras imagens guardadas em compartimentos invioláveis da memória e de vivências inscritas no mais recôndito do ser, insculpidas – as imagens e as vivências – em mármore de raríssima consistência com estilete de diamante. Isso não é assim tão comum, mas também não chega a ser raro. Afinal, perscrutante leitora ou leitor, paira alguma dúvida quanto a estar no passado a fonte, o manancial de que se nutre a inspiração deste simplório escrevinhador, deste contador de histórias só aparentemente reais, que, a rigor, não passa de, sob a decisiva interferência – e intervenção – da musa inspiradora, exigente e rigorosa, agente instrumentalizador no processo de transformação dos insumos de lá extraídos em produto textual que lhes sirvo através de suportes generosos em ceder-me os seus ricos espaços? Pois que ora fique claro: é no passado que se enraízam, se ambientam, adquirem vida as minhas criações verbais, obviamente revestidas de arroubos de criatividade que lhes dão algum rebuscamento poético e fundamentalmente pautadas na concepção – que advogo – de ser a Literatura a arte das narrativas, em prosa ou versos, que tangenciam a realidade, assim como todo escritor é, na essência, o artífice da palavra.
Pois bem. Viajei nas vivazes asas da fértil imaginação. Revisitei assim o acolhedor Bosque Moreira Campos, no centro físico da Faculdade de Letras, no campus do Benfica, pra mim o pulsante coração da entidade, organismo essencialmente acadêmico – ou seja, de estudos, pesquisas, análises críticas e descobertas de puro teor científico; portanto, demasiadamente humano –, voltado para o desvendamento das nuanças que envolvem específicas línguas, o português-brasileiro em especial, para o esquadrinhamento investigativo das circunstâncias e efeitos do seu uso no cotidiano dos indivíduos, o que lhes dá dinamicidade, fluidez e significação, e para o criterioso desvelamento da natureza das manifestações artísticas que, utilizando-as como instrumental de expressão comunicativa, impregnam-nas de embelezamento, de deslumbramento e de humanismo.
Revivi momentos de extremo companheirismo, sede de compartilhamentos de aprendizados, de experiências, de vivências, de conhecimentos, de descobertas e até de questionamentos, os quais concorriam, em grande escala, para uma sólida formação acadêmica na área. E lá estavam, entre outros de idêntica linhagem, a Eugênia Marta, a Lorena, o Felipe, a Ana, a Beatriz, o Daniel, o Evaldo, a Luciana, o Luciano, o Miranda, o Francisco, a Deusa, a Micheline, a Arlete, a Catarina, a Lwdyvilla. Revi os meus abnegados mestres, exemplos de profissionalismo, de dedicação e envolvimento no sempre crucial processo da educação formal de jovens com espíritos sedentos de saber, mormente no elevado nível da prática universitária. E lá estavam, entre outros de igual jaez, o Adriano, o Álber, o Américo, o Paulo, o Linhares, o Edi, o Henrique, a Hebe, a Ana Cristina, a Ângela, a Sara Diva, as Veras (Moraes e Borges). Estávamos, todos nós – como se flores do bosque fôssemos, na passagem de século, no limiar de uma nova era, ainda não propriamente preparados para os avanços tecnológicos – a Inteligência Artificial e a Linguagem Computacional, por exemplo – que vêm, com rapidez estonteante, transmutando o “Homo sapiens” em “Homo technos”.
Antes do retorno ao presente, ao encapsulamento pleno da irrequieta alma pelo fragilizado corpo, reencontrei-me com efusivos grupos de joviais aprendizes que usufruíam da tranquilidade da pracinha de convivências da Cultura Francesa, espaço sempre disponível para arremates de projetos de atividades em equipes, para revisões de matérias às vésperas das rigorosas avaliações, para leituras que exigiam bastante concentração e até para alegres conversas sobre amenidades, apenas para manter azeitados os elos de amizade que naturalmente nos aproximavam, seres que, além de cognoscentes, éramos também extremamente sociáveis, tudo isso em ambiente protegido por um conjunto de altas copas de arvoredo longevo, nas quais se aninhavam uma multiplicidade de pássaros de agradáveis e molificantes chilreios.
Ainda sobrou tempo para reaproveitar o prestimoso atendimento da atenciosa senhora da cantina, de opções várias para saborosos lanches, onde costumava servir-me de substanciosa vitamina de sapoti com leite, acompanhada de croissant médio, alimento necessário e suficiente a repor nutrientes ou mesmo a matar a fome de quem não tivera tempo para o matinal desjejum domiciliar. Vida de quem, além de ser arrimo da família, cumpria conciliar estudo e trabalho.
De longe, cumprimentei, com reverência de aceno de cabeça, a professora Vera Borges, filha do casal baturiteense Antônio de Sousa e Carminha e irmã do Manuel e Alberto, diletos amigos nas minhas fases de pré e adolescência, família que, no bairro Putiú, lá na secular Baturité, residia em larga casa de quatro janelas e porta central, defronte a aladeirada rua de acesso ao Alto da Capela, o da igrejinha do Cristo Redentor, em cujo entorno finquei as raízes da minha existência humana. Com ela, ainda muito jovem, concluí a disciplina Literatura Brasileira II, cujo ápice atingimos nos profícuos seminários, atividade em grupo que envolvia pesquisa, análise literária, produção textual (relato formal) e apresentação em sala de aula.
Já recomposta a minha dualidade – corpo e alma – recorri, por ato reflexo, aos meus guardados do tempo de estudante universitário, algumas peças preciosas que o tempo ainda não conseguiu consumir. E lá estavam vários relatórios – por mim digitados em Wordperfect e encadernados ao modo da época – sobre autores e obras que aformoseiam o rico e multifacetado portfólio da Literatura Brasileira, os quais resultam de trabalhos de pesquisa e pareceres críticos que levam a minha assinatura, valendo aqui destacar estes três: 1) sobre avida e a obra do poeta maranhense (Antônio) Gonçalves Dias, para quem o crítico literário Manuel Bandeira reserva o conceito de ser “O poeta brasileiro que mais profundamente e extensamente versou a nossa língua” (disciplina: Literatura Brasileira I; professor: o também poeta Adriano Espínola; equipe: Catarina, Lwdyvilla, Francisco e Luciano); 2) sobre a obra de Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva), então submetida à apreciação fonético-lexical, com vistas ao delineamento de perfil estilístico a partir da “voz autêntica e harmônica do homem sertanejo” (disciplina: Estilística do Português; professora: Maria Elias); 3) sobre Quincas Borba, de Machado de Assis, o bruxo do Cosme Velho, romance que dá continuidade, segundo ele mesmo, à sua obra-prima Memórias Póstumas de Brás Cubas (disciplina: Literatura Brasileira II; professora: Vera Borges; equipe: Arlete, o exemplo de profissionalismo; Catarina, a perseverança à toda prova; Lwdyvilla, a juventude e o pensamento crítico; e Luciano, o perfeccionismo ao extremo). Reli-os com olhos do passado e o coração com batidas levemente alteradas, certamente em virtude da saudade que mansamente o invadia.
Diletantes leitoras e leitores, em verdade lhes digo que, ainda sob efeito de prazeroso êxtase, a sensação que então embalou o ser ora em plena calmaria é de que rejuvenesci, remocei, o corpo impregnado de improvável arranjo de múltiplos olores, originários do revisitado bosque, extraídos de todas as suas belas flores.