Tirem seus filhos surdos das escolas de ouvintes!

Esse título parece uma palavra de ordem, mas não é. É um grito angustiado.

Todos os anos as três escolas que em Fortaleza oferecem educação bilíngue para surdos recebem novos alunos que, aos 12, 13, até mesmo aos 17 anos, nelas chegam sem língua: não falam Libras, não leem nem escrevem o Português. De onde vêm? Das escolas de ouvintes da rede municipal de ensino. (Digo escola de ouvinte, para dizer: escola lusófona; e porque, ao contrário do que diz o discurso oficial, não existe escola comum).

Depois do fenômeno bolsonarista, a maioria de nós já admite que certos discursos preparam – pois a autorizam – a violência. Falar abertamente em se armar e se defender usando essas armas autorizou publicamente a que milhares de pessoas, já na campanha eleitoral de 2018, saíssem às ruas com armas. E com elas matassem outras pessoas.

A violência contra os surdos começa quando a Educação Especial – que não é apenas uma modalidade de educação ou uma área de formação e pesquisa, mas uma instituição de controle social, de gestão alienada/exterior de pessoas – dissolve a diferença linguística da pessoa surda no conceito de deficiência.

Hegel dissera, a propósito da Revolução Francesa, que toda tentativa de dar realidade a uma abstração produz violência e terror. Ora, toda a política de Educação Especial assim dita inclusiva se baseia numa abstração: deficiência. Pessoas com atipicidades e diferenças muito distintas entre si são agrupadas num conceito cuja única base é o diagnóstico médico de que lhes falta algo. Assim, os surdos, que foram além da condição médica da surdez (no sentido de ausência de audição) e se constituíram como comunidade linguística, pois suas relações sociais produziram uma língua, são reconduzidos, dessa diferença linguística, à conceituação médica da surdez, da deficiência.

Essa violência conceitual prepara, estimula, legitima todo um conjunto de violências práticas. O resultado é: crianças surdas que devem estar na escola cuja língua não é nem pode ser a sua, nas escolas lusófonas, porque é “com deficiência”; e, portanto, devem estar juntos com todos os outros alunos com deficiência, na escola de ouvintes.

Ora, na verdade, todos os alunos, independente de serem ou não com deficiência, devem estar nas escolas lusófonas se, e apenas se, sua língua for a portuguesa. Mas em educação a diferença surda não se caracteriza pela surdez, como seria em medicina, mas pela especificidade linguística, já que linguagem e língua constituem o terreno no qual o pensamento e a aprendizagem da criança se desenvolvem.

E língua não se a adquire senão vivendo-a, senão em relações sociais práticas mediadas pela linguagem (que é sempre uma determinada língua). Negar à criança surda a possibilidade de conviver com outras crianças surdas é negar-lhe a aquisição espontânea da sua língua. E sem língua, a criança está impedida não apenas de desenvolver o pensamento no sentido do conhecimento e da conceptualização, mas também de sua formação psíquica, pois a linguagem/língua é o lugar no qual nossos desejos, rancores, medos etc. ganham forma simbólica.

E é justamente assim que muitas crianças surdas permanecem até a adolescência, ou além: sem língua, sem desenvolvimento das funções conceituais do pensamento, sem simbolização de suas próprias experiências psíquicas. Professores e gestores não se incomodam com isso, porque creem que são parte da surdez esses atrasos, quando na verdade são próprios à expropriação da língua. O atraso no aprendizado, a impaciência (às vezes, a agressividade), os delírios, a depressão etc. não são determinados pela surdez (pela ausência de audição), mas pela ausência de língua/linguagem.

Por amor a eles, não façam isso com seus filhos! Garantam o direito deles a adquirir uma língua na mesma idade da maioria das crianças. Permitam que eles aprendam, com base na língua adquirida espontaneamente em ambientes escolares propícios a isso, a ler e escrever o Português, talvez não na mesma idade que as crianças ouvintes, mas certamente nas primeiras séries do Ensino Fundamental; e, com Libras e Português escrito, que aprendam os outros conteúdos escolares.

Permitam-lhes a alegria da infância, os erros da adolescência, a experiência e o aprendizado com seus pares surdos. Enfim, tirem seus filhos dessas escolas cuja língua não é a deles e os matriculem em uma das três escolas de surdos (isto é, bilíngues: Libras/Português) que há em Fortaleza. Não há crime maior do que produzir pessoas sem línguas.

Emiliano Aquino

Professor Associado da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutor em Filosofia (PUCSP), com Estágio Pós-Doutoral na Universidade de São Paulo (USP). Autor de *Reificação e linguagem em Guy Debord* (EdUece, 2006) e *Memória e consciência histórica* (EdUece, 2006), além de capítulos de livros e artigos de filosofia em revistas especializadas. Militante socialista independente.

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Emiliano Aquino

Professor Associado da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutor em Filosofia (PUCSP), com Estágio Pós-Doutoral na Universidade de São Paulo (USP). Autor de *Reificação e linguagem em Guy Debord* (EdUece, 2006) e *Memória e consciência histórica* (EdUece, 2006), além de capítulos de livros e artigos de filosofia em revistas especializadas. Militante socialista independente.