Teoria e práxis revolucionárias para a solução do enigma atual  

Disse Lenin: “sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”. Mas qual a diferença entre movimento revolucionário de tomada do poder burguês e a consolidação da revolução anti-capitalista, anti-burguesa? O conceito de revolução social precisa ser bem definido à luz das experiências vividas na história e seus ensinamentos.  
Movimento revolucionário, como seu próprio nome está a indicar, é guerra de movimento, ou seja, é processo; a revolução consolidada é conceito mais profundo, significando situações nas quais não há lugar para retrocessos sociais.  

Como exemplo de comportamento social irreversível e, portanto, revolucionário, podemos citar a eliminação legal e conceitual da propriedade de um ser humano, devidamente registrada em cartório, como havia no Brasil e outros países que praticaram o escravismo direto de africanos, até ser substituído pelo escravismo indireto do trabalho abstrato induzido pela própria dinâmica dos interesses sociais em mutação.  
A propriedade humana do escravismo direto é hoje, prática inconcebível de aceitação como lei pelas sociedades atuais, ainda que existam de modo clandestino em muitos lugares (e que vem se acentuando). Podemos, assim, dizer que o fim da propriedade humana no escravismo direto foi alvo de uma revolução cultural e comportamental irreversível.  

Mas há revoluções comportamentais de costumes e práticas sociais. O uso dos lampiões de gás substituídos pelos modernos refletores, representam técnicas de usos sociais irreversíveis e de evoluções comportamentais
revolucionárias irreversíveis como tantas outras que poderiam ser citadas e que ocorrem cotidianamente até serem substituídas por outras mais modernas; é o processo de revolução comportamental dentro das revoluções.  
Como, por exemplo, se chamar de revolução ao golpe militar de 1964, que antes de revolucionar qualquer coisa, apenas retrocedeu no tempo e demonstrou o primarismo de seus propósitos e práticas caindo de podre?
Revolução social somente pode ter esse nome quando relativa a fatos irreversíveis nas relações sociais. Nesse sentido, a revolução somente é atingível em seu processo de mutação social que se revela irreversível; o próprio movimento revolucionário, que se dá no interior das revoluções, é algo intrínseco à dialética do movimento das relações sociais.  

A consolidação da revolução é guerra de posição que somente pode ser assim considerada se houver permanentemente revoluções dentro da própria revolução, ou seja, se houver evolução no sentido do crescimento do intelecto humano que torne ridículas e inaceitáveis as práticas anteriores.
Referimo-nos à evolução humana como  uma visão estética integral do homo sapiens, como bem se referiu a jornalista Heliana Quirino, do Jornal Segunda Opinião, em seu instrutivo artigo “Educação Estética e a Arte Esquecida de Moldar a Alma Humana”, ao se referir ao significado da educação grega dos primórdios (a paideia) e seu modo abrangente dos vários aspectos da vida humana (desenvolvimento e apreensão das ciências humanas, científicas, das artes, dos valores morais e éticos, da virtude, fisiculturismo, etc.) e teoria crítica da “alienação” humana da vida social (Hegel, Ludwig Feuerbach, Marx).  
Nesse sentido, a contribuição de Marx sobre a alienação do trabalho é fundamento indispensável para a compreensão do que estamos vivendo hoje, período no qual tal alienação atinge um estágio de separação do homem daquilo que ele mesmo produz de tal modo acentuado que o próprio ser humano passou a ser supérfluo.    
Marx é fundamentalmente revolucionário quando analisa a natureza das sociedades capitalistas, e o faz num momento de transição destas perante as sociedades feudais monárquicas absolutistas e eclesiásticas, para concluir que o modo de produção social é o que define o caráter de uma sociedade; a organicidade política estatal ou comunitária é mero instrumento de ratificação do modo dessa produção.  
Neste sentido, o que podemos dizer de uma sociedade na qual a riqueza socialmente produzida de modo coletivo fica nas mãos de grupos econômicos monopolistas e que implementam a produção tecnológica de mercadorias e
serviços de modo a eliminar a substância da sua própria existência, o trabalho abstrato produtor de valor e remunerado por valor?  
O modo de produção capitalista é contraditório e irracional do ponto de vista da consecução do equilíbrio social, e é por isso mesmo que caminha para o cadafalso.

Disse Marx: “devemos lembrar que que há um pressuposto de toda a existência humana, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de fazer história. Mas, para viver, é necessário antes de mais nada beber, comer, ter um teto onde abrigar-se, etc.”  

Ora, basta olharmos para o cenário mundial para concluirmos que toda a vida social está em processo de deterioração acelerada como resultante de uma irracionalidade de práticas sociais que conspiram contra elas mesmas.

A concentração de riquezas patrocinada pela guerra concorrencial de mercado e a irreversível tentativa de redução de custos de produção de mercadorias com eliminação da mercadoria trabalho abstrato, alienado, significa a inviabilidade de toda a ordem capitalista num futuro próximo, e pelos próprios fundamentos, aí incluída a falência do Estado, cidadela capitalista republicana e, também, é claro, da suicida questão ecológica dela resultante.    

O cenário atual é de multidões caminhando à pé (incluindo-se gestantes, crianças e idosos) desde a América Central até as portas da América do Norte, via México, em busca do eldorado capitalista estadunidense belicista e explorador, ao invés de se oporem revolucionariamente nos seus locais de origem às causas dos seus infortúnios.  

Poderíamos aqui encher páginas de denúncias das misérias mundo afora que se explicitam pelo deslocamento mundial de populações famintas e desesperadas do hemisfério sul e zonas equatoriais para o hemisfério norte em busca de sobrevivência; de genocídios pelas guerras (agora se anuncia a escalada destas pelo oriente médio); de catástrofes ambientais cada vez mais severas e que ocorrem em ciclos cada vez menores de tempo; pelos frequentes massacres de estudantes de colégios e universidades praticados por atiradores em surtos psicóticos, etc.

Para constatarmos isso basta ligar a televisão ou o celular no noticiário, e, portanto, fixemo-nos aqui na questão da necessidade de superação disso tudo, enquanto ainda há tempo.  
Há que haver a subjetividade teórica para tal superação, e aí entra a questão da práxis revolucionária apoiada na teoria revolucionária.  

Viciamo-nos num modo de vida que fetichiza como nunca a antiga “aura sacra fames”, a sagrada sede do ouro, representada pela forma-valor em processo de dessubstancialização irreversível, e com ela morremos como um toxicômano que perde a vida por overdose de entorpecentes por dependência química insuperável, quando busca no seu consumo o alívio da dor da abstinência.  

Podemos sair deste torpor de modo gradativo, como quer (ou não quer?) a civilizada socialdemocracia de Joe Biden, Lula, Emmanuel Macron, Olaf Scholz, Rishi Sunak, Narendra Modi, em seus vários matizes?
– ou exacerbar o capitalismo liberal como quer a direita de Javier Milei, Bolsonaro, Trump, Putin, Nicolás Maduro, Xi Jinping, Victor Urban, Marine Le pen, Matteo Salvini, Recep Tayyip Erdogan, Oleh Tyahnybok, Nicolaos Michalolkiakos, Andrezj Duda, Alujandro Giammatei, Benjamin Netanyahu e tantos outros?  
– ou adotar o capitalismo de estado de Nicolas Maduro, Xi Jinping, kim Jong-un, Daniel Ortega, Miguel Diaz-Canel?
– ou as dinastias árabes de um sanguinário como Mohammad Bin Salman da Arábia Saudita ou o governo teocrático fundamentalista do Irã de Ebraim Raisi, ou o fundamentalismo religioso da Al-Qaeda e do Estado Islâmico e sua “sharia” assassina em nome de Alá?  

O que têm estes senhores em comum? Um estado e um poder político verticais; a produção de mercadorias para o mercado; e um padrão monetário a representar o valor de tudo!!!  
Os que fizeram as revoluções marxista-leninistas não negaram as categorias capitalistas (valor, trabalho abstrato, dinheiro, mercadorias, mercado, estado, partidos políticos, políticos, etc.) e terminaram por se submeter à tirania da lógica funcional destas categorias fundantes, com dissemelhanças políticas que em quase nada se diferenciam nas suas essências e raízes mais profundas.  

Por sua vez o capitalismo ocidental vive de um eterno retorno ao mesmo lugar, numa alternância de liberalismo clássico de Milton Friedmann e semi-estatismo capitalista de John Maynard Keynes, ambos cegos batendo numa mesma porta.    

Entendo que o mundo necessita de adotar um novo modo de produção e de organização social, e isto somente pode ser construído em um processo revolucionário mundial que possa conter a tirania da forma-valor e do estado, antes mesmo que haja a tragédia anunciada por fatores impulsionadores do colapso de médio prazo como a falência do sistema bancário mundial, aumento da temperatura a níveis insuportáveis à nossa existência, e guerras civis generalizadas.  
Que se valorize a vida em detrimento de qualquer outro interesse. Afinal, o que é o lucro de um banco ou o equilíbrio financeiro de uma grande empresa multinacional, ou ainda a necessidade de manutenção por aparelhos de Estados falidos, diante do bem estar e da vida da humanidade?
A teoria e a práxis revolucionárias são complementares e indissociáveis, razão pela qual há que se conscientizar e lutar para sairmos da opressão da tirania da forma-valor e sua formação política estatal.  

As revoluções armadas, necessitam, por sua natureza, da manutenção de um poder armado que a sustente perante a contrarrevolução. Mas a força maior de uma revolução desse tipo, não está necessariamente nas armas, mas no comportamento resultante da consciência popular que apoiou a vanguarda revolucionária.
Ora, que consciência maior de população pode haver se as mãos que produzem valor permanecerem paradas e em resposta à tirania do capital?  
Se você considera que isto é impossível dado o baixo nível da consciência revolucionária dos trabalhadores abstratos, entenda que não somente isto é possível como já está acontecendo, e mais pela contradição capitalista que está a prescindir substancialmente desses mesmos trabalhos abstratos.  

Já não se pode trabalhar, mas não se pode viver atualmente sem a mercadoria trabalho abstrato; uma equação irresolúvel sob o capital.  
O desemprego estrutural é crescente mundo afora, graças à cibernética e microeletrônica (cálculos, comunicação e robotização), e simplificação de costumes (o sucesso do carro elétrico, é bom exemplo da grande paralisia que causa no sistema produtor de mercadorias pela obsolescência do uso de combustíveis fósseis e produção de peças e serviços), e a vida se inviabiliza nos países pobres das África, Ásia, Américas Central e do Sul, nos quais o trabalho abstrato se reduz a valores miseráveis.

Se amanhã os trabalhadores abstratos de todas as áreas se desvencilharem de tal condição capitalista e passarem a ser simples contribuintes do esforço de produção coletiva para o consumo coletivo (que não tem nada a ver com trabalho abstrato), e disserem NÃO à produção de valor (dinheiro e mercadorias), não haverá força estatal e militar que possa se contrapor a tal decisão.

O trabalho e o trabalhador explorado é a face complementar da moeda, e não o seu oposto, e não deve ser incensado como fez Hitler e Stalin; como fez
o trabalhismo de Getúlio Vargas, Mussolini e de todos os matizes desde Lula a Tony Blair, e deve ser superado.
Se você quiser, a miséria capitalista acaba com muita brevidade e se descortina uma relação social radiosa com o apoio de todo o saber adquirido pela humanidade ao longo dos séculos, e agora, então, em benefício dela mesma.  

Simples assim.

(Ilustração: “o trabalho liberta”, frontispício de Auschwitz.)

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;