Sobre o pragmatismo político

“O pragmatismo é uma filosofia de técnicos; não é uma filosofia de homens.”

Gilberto Amado

​A melhor definição para o pragmatismo político, em uma só palavra, é oportunismo. Pragmatismo se traduz na ação de se fingir que se aceita alguma situação objetivando-se alcançar outra situação; é uma ação tática dentro de uma estratégia definida.

​Como todo oportunismo, cessada a oportunidade, surge a verdade que se esconde por trás da ação pragmática.
​Há quem defenda o pragmatismo como o meio justificando o fim. O problema é que de tanto agir mentirosamente, o pragmático se acostuma com a mentira, e alcançado o objetivo mor ele continua contaminado com o vírus da dita cuja, e o destrói.
​A NEP – Nova Política Econômica de Lenin, quando ainda vivo e no poder revolucionário russo, apesar do crescente agravamento da enfermidade que o levou à morte precoce (aos 54 anos e sete anos após a revolução bolchevique), era uma ação pragmática.

Diante da contrarrevolução renitente patrocinada pelos guardas brancos financiados por agentes internacionais e nacionais capitalistas ou monárquicos feudais e da queda da produção intencionalmente patrocinada pelos antigos empresários capitalistas e latifundiários russos que detinham o saber empresarial e aristocrático, e da fome do povo russo que causava insatisfação popular, que minava a revolução, Lenin adotou uma política de flexibilização das relações de produções capitalistas, aceitando-as sob pretensa fiscalização estatal proletária.

Com isto conseguiu amenizar a crise econômica. Se conseguiria com tal medida pragmática contornar o problema e retomar a linha inicialmente defendida em direção ao comunismo, e sendo hábil e sagaz revolucionário politicista, jamais saberemos, vez que morreu cedo e durante o início do processo de construção do chamado socialismo real.

Com sua morte veio a ascensão de Josef Stalin no comando de tudo (do Comitê Central do partido único e do governo), com a perseguição e destituição de todos os antigos revolucionários bolcheviques, inclusive do líder doutrinário e outrora comandante do exército vermelho Leon Trotsky, e a intensificação ao processo de estatização empresarial sob critérios capitalistas de produção social.

Em que pese o avanço social da Rússia, que era um país camponês sob os czares, com incipiente desenvolvimento industrial em São Petersburgo, então com as fronteiras fechadas ao capitalismo mundial, no pós-revolução desenvolveu-se industrialmente, alfabetizou e educou seu povo (a Rússia dos czares era um país de analfabetos), a ponto de fazer frente à Alemanha na segunda guerra mundial.

Mas passado este primeiro momento de pragmatismo revolucionário russo, o uso do cachimbo entortou a boca, e o desenvolvimento inicial foi gradualmente minado pelas regras capitalistas totalitárias de produção social e novamente a Rússia se tornou defasada tecnologicamente em relação ao mundo e aderiu ao capitalismo internacional de mercado, tornando-se um país capitalista.
A conclusão óbvia é que o pragmatismo russo sucumbiu ao totalitarismo das relações capitalistas de Estado, e terminou por abrir suas fronteiras ao mercado internacional. A contrarrevolução burguesa triunfou sorrateiramente graças ao pragmatismo.

A história se repetiu com a China, e paramos por aqui na citação desses dois exemplos históricos fundamentais.
Cuba é capitalista de Estado. Os trabalhadores que enrolam as folhas de tabaco e produzem a apreciado charuto de Havana, são explorados pela extração de mais-valia tanto quanto um trabalhador de uma fábrica de cigarros em qualquer país capitalista do mundo.

A sensibilidade humanista (mesmo que se considere parcial, pois os opositores do regime são calados e tratados como traidores) em Cuba, que de fato existe (os negros cubanos de longe diferem das trágicas condições sociais dos negros da América Central e do Caribe), não pode sobreviver com a cabeça dos seus dirigentes focada num plano anticapitalista, mas com práticas capitalistas, cercada por um mundo totalmente capitalista.

Em que pese os embargos econômicos estadunidenses, que de fato causam grandes carências ao povo cubano, a insatisfação por lá é cada vez mais volumosa e reflete a necessidade de adotarmos, mundialmente, uma relação de produção fora da lógica capitalista decadente ali existente sob uma forma política estatizante, ora flexibilizada pelas circunstancias “pragmáticas”.

A revolução ou é mundial ou não é!
Passa, como vimos dizendo, pela adoção de um modo de produção voltado para a satisfação do consumo, prática que naturalmente irá convergir, até por consequência, com as práticas e conceitos humanistas de convivências sociais e ampliação dos ganhos civilizatórios, ao invés dos retrocessos que ora são defendidos por energúmenos dirigentes políticos obedientes à restrição de direitos em face da debacle capitalista.
​Um esclarecedor exemplo de pragmatismo pernicioso podemos extrair da postura do Boçalnaro, o ignaro.

​Num momento em que ainda pensava estar politicamente forte, atacava o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal enquanto instituições (não esqueçamos da frase do seu filho que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF); agora, acuado e temendo ser defenestrado do poder em face de uma quase unanimidade sobre sua incompetência administrativa, dubiedade política, descaso com a vida dos brasileiros, e agora, com provas contundentes de existência de corrupção, nega o que até ontem pregava nos seus breves pronunciamentos de porta de palácio para uma claque de seguidores fanatizados.
​Da condenação da velha política se transformou num pretendente a velha raposa desta horda de fisiológicos com afago permanente ao Centrão, grupo histórico de parlamentares fisiológicos, sob a forma do toma lá dá cá.

​Da agressão de anteontem ao Ministros do STF passou a conciliar com o Presidente do Corte Suprema do país e com os dirigentes das Casas Legislativas, pregando a paz e a harmonia entre os poderes, tão manso como cordeirinho de estimação, numa postura de fazer inveja ao famoso Delicadeza, o adorado e saudoso guru do humanismo carioca.

​Do liberalismo econômico capitaneado por Paulo Guedes, e como todo militar governante, deixa claro que esse negócio de privatização de empresas públicas é somente bravata de campanha eleitoral e de discurso para os seus adeptos mais recalcitrantes.

​Do endeusamento ao ex-Juiz Sérgio Moro, símbolo bolsonarista de paladino da justiça e super-homem inflado nas manifestações públicas, o que se viu foi a tentativa de enquadramento e aparelhamento do Ministério da Justiça, num uso descartável de um personagem que apenas lhe serviu como imagem (falsa) de uma bandeira pretensamente anticorrupção.
​O simbólico ex-Juiz e ex-Ministro da Justiça tornou-se, em pouco tempo, um adversário detestável. A farsa de ambos estará relegada ao lixo da história.
​Diante da iminência de perda da eleição de 2022 (se antes não for destituído do poder, possibilidade cada dia mais admitida por todos) prega contra o processo eleitoral que o elegeu, como se este fosse fraudado por manipulações eletrônicas, numa antecipada justificativa para o fracasso (até nisto ele copia o Trump, sabendo que terá o mesmo fim).
​O pragmatismo mambembe do Boçalnaro, o ignaro, tem um único objetivo: manter-se no poder.

​Mas ele não percebe que em política a coerência de uma linha de pensamento e ação por um governante conspira contra o pragmatismo orientador das ações de governo que venha a adotar de modo oportunista.

Quando se muda rapidamente da água para o vinho como ele o faz, perde apoio entre os seus, que decepcionados com a negação dos dogmas anteriormente defendidos e prometidos (apoio militar incondicional, combate a corrupção – lembram-se da promessa de abrir a caixa preta do BNDES -, desestatização das empresas públicas, combate ao fisiologismo político, mais Brasil e menos Brasília, etc., etc., etc).
Boçalnaro, o ignaro, é negacionista até dele mesmo.

A busca da verdade social, ainda que nunca seja absoluta, tem ojeriza ao pragmatismo, vez que a justiça social construída consistentemente sob bases sólidas, sem oportunismo, ainda que demore a se estabelecer, quando o fizer terá sido de modo irreversível.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;