Lula e Bolsonaro são duas faces da mesma moeda? Os apoiadores de um se parecem, em ações, com os do outro? Estaríamos presenciando um momento único na história do Brasil em que duas figuras ”separadas mas iguais” polarizam o país que urge por uma terceira via? Essas perguntas são bastante relevantes para este ano de eleição.
Refleti um pouco sobre elas ao ler alguns textos e gostaria de tecer alguns comentários que acredito serem relevantes. Espero que o leitor me acompanhe na reflexão e tire suas próprias conclusões.
Um amigo me sugeriu a leitura de um texto sobre bolsonarismo. De autoria de Daniel Aarão Reis[1] o referido texto constrói um excelente quadro histórico sobre como chegamos a uma situação em que um político de extrema-direita do baixo clero da Câmara dos deputados como Jair Bolsonaro vence uma eleição presidencial.O bolsonarismo é fruto de um momento histórico mundial de contestação às revoluções científicas e sociais surgidas nos anos 60 do século XX, pontua Aarão, uma reação ao afastamento das tradições e da moral vigente e uma resposta nacionalista e reacionária ao endurecimento do capitalismo financeiro que se propaga desde o fim dos anos 70 e início dos 80, com a vitória de Thatcher no Reino Unido e de Reagan nos EUA.Nesse sentido faz parte de um movimento global.
A crise de 2008 penalizou trabalhadores assalariados e a classe média dos países de capitalismo avançado, fazendo estragos no Brasil.Ao invés de taxar os mercados financeiros que no final das contas produziram a crise, os governos penalizaram os trabalhadores com uma socialização do prejuízo, em que o poder público paga a dívida feita por agentes privados. Os partidos de centro-esquerda e centro-direita perderam a credibilidade perante o eleitorado e não conseguiram combater o fenômeno da indiferença política(Daí surge a força de ”palhaços” usados como voto de protesto como Tiririca e o atual presidente da Ucrânia que era um ator e humorista de televisão).No Brasil, PT e PSDB, os principais partidos reformistas da nova república se lambuzaram de alianças com elites econômicas e políticas corruptas e deixaram de lado demandas por ética na política, melhores serviços públicos, combate à violência e uma segurança pública que funcione para os mais pobres. Esse vácuo fez com que o canto da sereia da direita anti-sistema encantasse parte significativa da população, sobretudo através das redes sociais.
Sobre o uso das redes sociais a antropóloga catarinense Letícia Cesarinos escreveu um instigante artigo[2], resultado de uma longa pesquisa sobre as eleições de 2018, em que destrincha muito bem a atuação dos seguidores do atual presidente.Os apoiadores do capitão se articulam por meio das redes sociais(Twitter, Whatsapp, Youtube,Telegram e etc) e produzem discursos que reforçam a identificação com Bolsonaro, uma mistura explosiva entre conservadorismo, punitivismo, ultraliberalismo, fundamentalismo religioso, nacionalismo, fake news e militarismo. Cesarinos[3] chama isso de ”interação lider-povo” seguindo na esteira das interpretações de Ernest Laclau[4] e Chantal Mouffe[5] sobre o populismo. O populismo segundo Laclau e Mouffe não é um fenômeno reservado a sociedades ”atrasadas” como a América Latina tributária de uma ”tradição autoritária” fruto de sua herança ibérica, mas sim um fenômeno que pode ocorrer em qualquer sociedade seja ela ”desenvolvida” ou não.O palco da atuação dos movimentos populistas nos dias de hoje são as redes sociais.Nesse sentido os grupos de Whatsapp que reproduzem mensagem do tipo ”compartilhe até chegar no capitão” ou ”o capitão precisa saber desse fato” são produtos de uma lógica política que cresceu num cenário global de crescimento do populismo de direita e da perda de confiança nos sistemas peritos da sociedade. Donald Trump,Victor Orbán, Boris Johnson, Ivan Duque e Jair Bolsonaro não surgiram do nada. Todos eles sabem muito bem o que os seus apoiadores querem ouvir e entendem perfeitamente as fraquezas da democracia representativa a ponto de as explorar e fazer sua mensagem ecoar por toda nação. O vírus do populismo autoritário se transformou em uma mortífera pandemia e não em uma ”gripezinha”.
Diante destas constatações, se faz necessário tecer algumas considerações sobre o suposto movimento rival-irmão do bolsonarismo, o lulismo. Bom, primeiramente preciso dizer que minhas considerações refletem em parte o que André Singer aponta no seu livro ”O sentido do Lulismo-reforma gradual e pacto conservador”[6]. Singer aponta que o PT se transformou num partido de massas depois de 2002. Nos anos 90 e 80 o partido era preferido por cidadãos de centros urbanos e de alta escolaridade, que levou a sigla a em dado momento ser conhecida como partido das capitais. O chamado ”mensalão” prejudicou bastante a imagem do PT na classe média brasileira, porém, as políticas sociais articuladas entre 2003 e 2005 fizeram com que os muito pobres(o que Singer designa como o ”subproletáriado” brasileiro) se entusiasmasse com o PT e com Lula em especial. No livro, Singer demonstra que curiosamente os pobres desde 1989 possuíam uma tendência a votar na direita seduzidos pelo discurso da ordem contra a bagunça dos grevistas e esquerdistas(com essa percepção Collor venceu Lula em 1989 e FHC derrotou o petista duas vezes ainda no primeiro turno). Lula ao aderir a ordem econômica ortodoxa imposta por FHC ao mesmo tempo que impelia o mercado interno brasileiro a produzir e distribuir riqueza para os mais pobres uniu a ordem com a transformação social, conservadorismo fiscal com progressismo político, afago nas elites e no povão.Um excelente ”pulo do gato” para Singer[7].
Uma rápida passagem no canal do Youtube de Lula em comparação com Bolsonaro mostra que o segundo é bem mais assíduo na plataforma que o primeiro. No Telegram Bolsonaro possui bem mais seguidores que seus concorrentes e boa parte de sua campanha será realizada por lá. A força do lulismo é pré-redes sociais, um movimento oriundo de um sentimento de apoio a um líder que afaga uma parcela significativa da população. A origem humilde de Lula e suas falas voltadas para o povão(com diversas analogias com religião, futebol, comida e etc) contribuem bastante para isso. O bolsonarismo é fruto de memes e trollagens da internet em um processo de assassinato de reputações de inimigos sejam eles ”esquerdistas”, ”feministas” ou ”globalistas”. A delimitação (e o combate) do inimigo é essencial para o movimento.
Necessário lembrar que nas décadas que passou na Câmara dos deputados Bolsonaro não fez nada de relevante do ponto de vista institucional.Não aprovou lei relevante, não propôs debates importantes, nada. Ao contrário disso, com todas as suas muitas contradições, Lula tem serviços prestados ao país e se emprenhou em fortalecer o pacto da democracia liberal no Brasil.Governou buscando fazer acordos com todo mundo, tanto que se embrenhou em negociatas nada democráticas. A utopia lulista é um povo com renda e bem alimentado; mesmo que muitas vezes indiferente à ética na aliança política. A utopia bolsonarista é um povo manso e ordeiro, ao mesmo tempo que reacionário, autoritário e pré-moderno. Portanto, igualar lulismo com bolsonarismo é forçar uma equivalência sem basear-se na ação dos sujeitos analisados. Se hoje existe dualidade que se repete é em parte fruto da incapacidade que a centro-direita teve em se portar como relevante politicamente depois da derrota de Aécio para Dilma em 2014. Mesmo com a Lava-Jato, o PT continuou relevante eleitoralmente, chegando no segundo turno em 2018.A direita tradicional não passou dos 4% de intenção de voto no referido pleito e no frigir dos ovos apoiou o capitão contra o professor no segundo turno e os partidos foram até mais longe se juntando ao governo nas votações no Congresso(O PSDB por exemplo votou pró-governo em quase 90% das matérias).
Minha conclusão em relação a esse extenso debate(que não tenho a intenção de ter saturado ou abarcado todas as partes) é que igualar o lulismo com bolsonarismo é um erro conceitual, e as premissas deste raciocínio são muitas vezes bastante rasas e motivadas por pura ideologia política ou preguiça da imprensa que simplifica demasiadamente a realidade política. Por mais que seja possível dizer que o lulismo é danoso para a esquerda, que a hora de Lula já passou e que a esquerda precisa optar por um outro nome para derrotar o atual governo etc, é preciso lembrar que o sindicalista é um quadro que não traz riscos à existência da democracia brasileira. Bolsonaro representa um ideal político de supremacia de determinados grupos sociais autoritários que põem em risco nossa institucionalidade. Várias vezes prometeu e ensaiou golpes de estado. O que fará numa possível derrota? Estes temores não existiam em relação a FHC, Lula e Dilma.
Por fim, que o leitor não pense que este texto foi escrito com a finalidade de defender o lulismo ou o petismo. Meu incômodo é com o chavão repetido a todo momento — que o problema do Brasil é a ”polarização” entre lulistas e bolsonaristas, como se esses movimentos fossem iguais e tivessem mais ou menos os mesmos objetivos.Cabe ao leitor refletir sobre os meus apontamentos e formar suas próprias percepções.
Referências bibliográficas
[1]REIS AARÃO,D. Notas para compreensão do bolsonarismo.Estudos Ibero-Americanos,Porto Alegre,v.46.n.1.p.1-11,jan-abr.2020.
[2];[3]CESARINOS,L.Como vencer uma eleição sem sair de casa: A ascensão do populismo digital no Brasil.Internet& Sociedade.n.1.v.1.fevereiro de 2020.p.91-120.
[4]LACLAU,E.On populism reason.Londres.Verso.2005.
[5]MOUFFE,C.The democracy paradox.Londres.Verso.2000.
[6];[7]SINGER,A.Os sentidos do lulismo; reforma gradual e pacto conservador.São Paulo.Companhia das Letras.2012.