Ao folhear as páginas do jornal Segunda Opinião, deparei-me com uma publicação de Osvaldo Euclides de Araújo, intitulada “Pré-leitura de « A Arte de Viver em Deus », de Timothy Radcliffe. A tentação de refletir sobre o tema superou o receio de desagradar com minha perspectiva. Questionar crenças nunca é tarefa simples, mas espero que, se algum leitor for tocado por minhas palavras, seja alguém de espírito livre, capaz de acolher ideias divergentes sem se sentir ameaçado.
A verdade nua e crua é que encontrar um sentido para a vida é uma tarefa extremamente difícil. No entanto, há momentos em que ele parece se revelar magicamente — no afeto compartilhado, na cumplicidade de um gesto, ou num abraço generoso entre pessoas. Sentimos algo semelhante diante da beleza de uma obra de arte, de um livro ou de uma música que nos toca profundamente. Nessas ocasiões, talvez não encontremos exatamente o sentido da vida, mas ao menos esquecemos, por um breve instante, a ausência dele.
Contudo, em momentos de crise, é quase inevitável ser tentado a clamar por clemência a Deus, Olorum, Brahma, Alá — ou qualquer outra entidade que transcenda nossa existência. Sem dúvida, isso reflete um saudosismo da infância, quando tínhamos nossos pais para resolver nossos problemas ou, ao menos, nos oferecer conforto.
A dura realidade, no entanto, é que somos jogados neste mundo sem a certeza de absolutamente nada, exceto que a morte chegará em algum momento de nossas vidas. Por isso, pessoalmente, não encontro conforto em nenhuma crença ou religião. Pior, estou convencida de que Deus não pode existir. Claro, minha convicção não carrega o peso da verdade, e o fato de eu não acreditar em Deus de forma alguma prova sua inexistência. Mas como posso crer em um Pai amoroso, onipotente, onipresente e onisciente quando o mal, o sofrimento e a injustiça nos cercam a cada esquina? Se Deus tem poder ilimitado, está em todo lugar, sabe de tudo e nos ama, qual é a explicação?
Timothy Radcliffe, em A Arte de Viver em Deus, não foge da questão do mal no mundo. Embora não ofereça uma “justificativa” fácil, ele reflete sobre a coexistência do sofrimento humano com a presença divina.
Radcliffe argumenta que, em vez de uma explicação racional para o mal, a fé cristã oferece outra resposta: a de que Deus se solidariza com o sofrimento humano. Para ele, a cruz de Cristo é central nessa compreensão. Ao sofrer na cruz, Jesus compartilha da dor e da injustiça do mundo, mostrando que Deus não está distante ou indiferente, mas profundamente envolvido.
Tenho dificuldade em aceitar essa justificativa. A primeira comparação que me veio à mente foi a de um pai que, podendo evitar que seu filho seja espancado, cruza os braços e, para mostrar solidariedade, se deixa espancar também. É isso que querem dizer?
Radcliffe também sugere que a resposta ao mal não é passividade ou aceitação, mas um compromisso ativo de lutar contra a injustiça, a opressão e o sofrimento. Segundo ele, Deus nos chama a ser agentes de transformação, trabalhando pela cura do mundo. Assim, a fé não resolve o mal, mas nos dá uma vocação para enfrentá-lo com amor, esperança e ação.
Uma vocação? Então, aquele pai espancado estava apenas tentando inspirar seu filho a enfrentar o mal? E se os homens e mulheres não forem cruéis o suficiente, Deus dá uma ajudinha com terremotos, tsunamis, furacões, para garantir que haja sofrimento e possamos todos nos sentir“vocacionados”?
Radcliffe conclui com uma frase bela: “O mal deve ser confrontado e transformado à luz da presença divina, que se revela no amor e na compaixão.”
Sério? Será que minha inteligência é digna de um tijolo, minha mente funciona como a de um peixinho dourado, ou meu raciocínio é tão fechado quanto uma porta trancada?
Mas eu creio na fé.
Na perspectiva cristã, a crença em Deus é o fundamento central da fé. Timothy Radcliffe, por exemplo, defende que a fé cristã está profundamente enraizada no relacionamento com Deus.
Para ele, a imaginação desempenha um papel essencial no exercício da fé, funcionando como uma ponte que nos permite transcender as limitações da realidade cotidiana e acessar verdades mais profundas. Radcliffe não vê a imaginação apenas como uma atividade criativa, mas como uma poderosa ferramenta espiritual que nos capacita a vislumbrar um mundo mais justo, belo e amoroso — mais próximo dos ideais divinos.
Ele argumenta que, sem a capacidade de imaginar, ficamos aprisionados em nossas próprias limitações e nas durezas da vida. A fé exige ousadia e abertura para o mistério, e é através da imaginação que podemos conceber realidades que não vemos, como o Reino de Deus ou a transformação de um coração. Essa habilidade é crucial para viver em Deus, pois nos permite enxergar além do imediato e acreditar em uma vida movida pela esperança, mesmo diante de incertezas.
Radcliffe também sugere que a imaginação é fundamental para interpretar as escrituras e os símbolos da fé. É ela que nos ajuda a conectar as antigas histórias bíblicas à nossa experiência atual, tornando o passado contemporâneo e relevante. Para ele, viver a fé é um exercício contínuo de imaginação — de sonhar com novas formas de amor, justiça e fraternidade no mundo.
Nesse ponto, finalmente concordamos. Sem uma boa dose de imaginação, é muito difícil, talvez impossível. Mas, na fé eu acredito. Não necessariamente na fé em Deus, mas na fé entendida como confiança em algo maior que a individualidade. A busca por significado, a conexão com o outro e a prática de virtudes como compaixão, perdão e paciência podem ressoar em pessoas que não precisam acreditar em Deus ou outra divindade.
Muitas das práticas que Radcliffe sugere, como viver em comunidade, buscar a verdade e nutrir a espiritualidade, podem ser adotadas por qualquer pessoa aberta a essas experiências, independentemente de crenças religiosas.
A questão central, portanto, não é apenas sobre onde cada um encontra o sentido da fé. Para Radcliffe, esse sentido está em Deus. Para outros, pode estar nos princípios éticos, no amor ao próximo ou na busca por uma vida significativa.
Por fim, gostaria de lembrar uma amiga que certa vez me disse: “Preciso crer em Deus; minha vida seria um tormento sem Ele.” Talvez esse seja o argumento mais poderoso para a existência de Deus. No coração e no espírito de quem crê, Ele certamente existe. Muitas pessoas encontram na fé um alicerce que torna suas vidas mais suportáveis e revelam-se extraordinárias. A fé alheia nunca me incomoda; ao contrário, tenho um profundo respeito por ela. O que me motivou a comentar este livro foi o amor pela filosofia. São os espíritos livres, tanto entre crentes quanto ateus, que possibilitam esse exercício profundo de reflexão.