“Catar feijão se limita com escrever”, já acentuou João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999). A metáfora presente neste verso do poema Catar Feijão, do escritor e diplomata nascido em Pernambuco, sugere a construção bem planejada de um texto: a retirada do excesso de vocábulos, a escolha combinatória na busca pela palavra exata, bem como instiga a noção do grão – a letra, que pode boiar e que pode ir fundo numa estrutura textual, aspecto último este que remete – como prática social – à chamada leitura crítica.
Portanto, em tal conjuntura, no campo discursivo do poema desse escritor pernambucano, há também a ideia de um ato criador na escrita, o qual pode ser polarizado entre a superfície e a profundidade. Por conseguinte, a raiz do texto: a ponta do iceberg e a busca pelo desvendamento dos segredos que ele apresenta em sua extensão, como sustenta a teoria já clássica da linguista Ingedore Villaça Koch, a quem tive o prazer de conhecer, ser aluno e entrevistar quando estudante de Letras na UECE.
Em todo o quadro, o trabalho (re)percutido pelo emissor da mensagem: os motivos que o levaram à escrita, os espaços vazios que deverão ser preenchidos pelo leitor, a busca pelo significado que a palavra sugere, a compreensão dos implícitos e dos explícitos, a tomada e a retomada dos sentidos e, fundamentalmente, o desenvolvimento da memória, da atenção e do raciocínio. Porém, sem esquecer a emoção: o prazer de ler um texto, ação que nos constrói em diversos aspectos culturais, políticos e, sobretudo, humanos.
Ainda: o ato da escrita no poema citado envolve uma estética que preconiza uma possível alimentação: o grão é o feijão e, assim como a letra, a palavra é o grão, que gramaticaliza – estabelecendo relações sintáticas numa sentença, clarifica e concretiza o desejo de escrever, de comunicar o que está em nossas almas, em nossos corações de estudantes, em nossas interferências pelo mundo, vasto mundo…
Toda essa conjuntura sinaliza um encontro profundo e intenso com a palavra, ou com os subterfúgios que dela emanam. E isso foca possíveis epifanias. O que seria compreendido como o desenho de um paradoxo se esvai: as revelações que surgem no ato da literatura envolvem tornar compreensível ao leitor um aspecto que tenha sentido apenas para quem escreve, o que exige reflexões sobre a vida. E também sobre o percurso que este leitor perfaz nas suas conexões com o universo vocabular.
Remeter essas ideias ao mundo epifânico e literário significa lembrar de Clarice Lispector, escritora e jornalista ucraniana – naturalizada brasileira – que tematizou sobre o mundo envolvendo-o em esferas espirituais e existenciais. Que o diga minha amiga querida Isolda Colaço Pinheiro, uma perspicaz pesquisadora da Semiótica e da obra clariciana, principalmente do livro “A Paixão segundo GH”, foco de sua monografia de pós-graduação na UECE.
Em seu trabalho acadêmico, Isolda não deixa por menos, realizando uma tarefa singular e muito interessante: faz uma análise dos diferentes espaços, dos objetos e das simbologias no texto de Lispector. Além desse aspecto, observa a linguagem dessa escritora no entorno dos significados e dos enigmas presentes, remetendo-os igualmente a fluxos de consciência. E, advindo do recorte preconizado: Isolda elabora uma reflexão semiótica dos símbolos linguísticos veiculados na construção existencialista de tal obra.
Há ainda algo a acrescentar em torno da epifania: versar sobre ela e os significados que surgem a partir de sua existência se conectam, por sua vez, ao mundo vivenciado. É o que ocorre e acontece quando resolvemos impasses. Assim, por conseguinte, e numa afirmação ainda que incipiente: faz-se a luz – advinda das revelações compreendidas no processo – e resolvemos problemas, os quais não eram “enxergáveis”, por assim dizer. Em todo esse quadro, e como consequência, valorizam-se a autoestima e o chamado “bom combate”: a luta por ser feliz e pelo encontro que temos com a gente mesmo nas esquinas da vida…
Toda essa conjuntura, portanto, envolve o campo literário e as comunicações orais (como comprovam as narrativas da evolução humana e suas tribos ao redor do fogo) e escritas. Sabe-se que elas surgem como atividades criadoras, e que têm o poder de fundamentar as pessoas, significando-as. Obviamente que entram aí questões políticas, como Lúcia Santaella diz – na obra “(Arte) e (Cultura): equívocos do elitismo” ao citar Bakhtin, o qual sustenta que a história literária canonizada confessa não pelo que afirma, mas “pelo que cala” (1995:18). Ou seja, para Santaella e para o escritor russo, os produtos da intitulada indústria cultural – considerados como uma espécie de “matrizes” do que as classes dominantes sustentam como resultado de suas produções – bebem em fontes importantes da cultura popular.
E, no entendimento deste pesquisador, esse aspecto termina por ser também um elemento epifânico. Vejamos: se há pessoas tentando compreender movimentações artísticas – quer sejam populares ou não, tentam captar o espírito criador, realizando vinculações entre o capital cultural que possuem e o elemento novidadeiro. Ao mesmo tempo, quando repetem e reorganizam recursos estéticos, podem recriar o velho ao novo, apondo – nessa esfera material/imaterial – possibilidades de interferências múltiplas ao que já existe.
Tudo isso é revelador da alma humana. Que pesquisa. Que cria. Que evoluciona princípios e meios tentando elaborar mundos novos, universo este que diz respeito à literatura e suas conexões com as diversas finitudes infindas das pessoas. E esse também é, portanto e enfim, o campo da escrita como prática social.
Carlinhos Perdigão
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Ensaio dedicado à Isolda Colaço Pinheiro, professora de português e que tem uma nobre alma de pesquisadora. Aliás, torço para que o texto monográfico que produziu sobre Clarice Lispector – e sobre o qual estou lendo, analisando e aprendendo – possa logo virar livro. Além dessa querida amiga, dedico este ensaio ao escritor Rubem Fonseca, produtor de uma obra robusta, prolífica e recém-falecido. Vai daqui a minha mais profunda homenagem a este “homem da palavra”, um dos meus mestres.