Só Freud explica

Golpe é escolha perversa. As intenções maléficas que o movem são colhidas e reconhecidas ao longo do tempo. A ciência política consagra golpe como um ato político de traição a alguém ou a alguma coisa. É um recurso extremo que a classe dominante lança mão visando recuperar privilégios ameaçados, retidos dentro de uma ordem injusta e desigual construída ao longo da história de uma determinada sociedade.

Como atestou o professor Wanderley Guilherme dos Santos, em seu livro “A democracia impedida” (FGV, 2017), o golpe atual chega ser pior do que o de 1964 na medida em que tem um compromisso antinacional e reacionário muito mais violento que o da época. Aqueles militares de 64, apesar de haverem criado uma seção despótica e assassina, nutriam compromissos com interesses nacionalistas. Não é o caso do Golpe de 2016 do qual a quase totalidade da direita golpista (civil, militar e religiosa), liderada por Temer, é profundamente antinacional.

Os acontecimentos que marcaram a última semana do mês de setembro vêm clarificar ainda mais a cupidez sobre a qual foi erigido o butim usurpador das riquezas naturais, do patrimônio público brasileiro e da vida das famílias de trabalhadoras e trabalhadores, aviltadas em seus direitos humanos básicos pelas políticas antissociais bolsonaristas.

Por um lado, os resultados alcançados pelo trabalho investigativo da CPI do Genocídio, instalada no Senado, confirmaram, por meio de provas testemunhais e documentais, todas as denúncias de corrupção moral e financeira implantada na estrutura do governo Bolsonaro, que vão desde o negacionismo até a produção de estratagemas de extermínio de seres humanos, copiando os piores exemplos dos horrores nazistas alemães (1929-1945). Portanto, a CPI demonstra claramente que o governo Bolsonaro não só perpetrou crimes comuns e de responsabilidade, como também crimes de lesa-humanidade.

Por outro lado, os vazamentos da “Pandora Papers”, uma série de reportagens feitas no âmbito do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), do qual fazem parte a Revista Piauí, os portais Metrópoles, Poder 360 e Agência Pública, comprovaram que o ministro da Economia, Paulo Guedes, juntamente com o presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, têm alta soma de dólares americanos depositados em paraísos fiscais.

Em setembro de 2014, Guedes fundou a “offshore” Dreadnoughts International, nas Ilhas Virgens Britânicas, um “paraíso fiscal” no Caribe. Não se sabe até hoje o porquê de serem chamados de “paraísos”. Na verdade são territórios criminosos que acobertam o dinheiro sujo que circula pelo mundo. Guedes aportou na conta de sua “offshore” a quantia de 9,55 milhões de dólares.

O artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal proíbe funcionário do alto escalão (como Guedes e Campos Neto) de manter aplicações financeiras, no Brasil e no exterior, passíveis de ser afetadas por políticas governamentais. Em janeiro de 2019, Guedes tornou-se o principal ministro do governo bolsonarista (Posto Ipiranga). Como o ex-juiz Moro, declarado incompetente e suspeito pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ele não poderia ter sido convidado nem tampouco aceito assumir a Pasta da Economia. Guedes é aquele que, na famosa Reunião Ministerial dos Palavrões, em maio de 2020, dirigindo-se à ministra Damares, sentenciou com sua “refinada ética pública”: “Deixa cada um se foder (sic!) do jeito que quiser”.

O mesmo embaraço ocorre com Campos Neto. Por ser presidente do Banco Central, e ao mesmo tempo dono de “offshore” em “paraíso fiscal”, tem acesso privilegiado a dados estratégicos referentes a políticas de câmbio e de juros, capazes de afetar os investimentos financeiros, dentro e fora do Brasil. Também como Moro, Campos Neto deveria ser declarado suspeito e incompetente para assumir tal presidência.

Por fim, o último acontecimento que chama atenção no final da semana passada foi mais uma virulência milimétrica de Ciro Gomes contra a militância do Partido dos Trabalhadores (PT), ao encerrar seu discurso na Paulista, no dia 02: “O povo brasileiro é muito maior do que o fascismo de vermelho ou de verde amarelo”.

Ele já havia afirmado recentemente que “usará a campanha eleitoral para lembrar ao País que Lula adotou a corrupção como método de governo quando se elegeu em 2002”. (https://veja.abril.com.br/blog/radar/lula-levou-a-corrupcao-para-o-centro-dopoder-diz-ciro-gomes/). Como também havia disparado nesta mesma semana uma “fake news”, bem aos moldes bolsonaristas, associando Lula à Prevent Senior, empresa investigada pela CPI do Genocídio.

Como Bolsonaro, Ciro Gomes já passou, por enquanto, até agora, por sete partidos políticos (PDS (antiga ARENA), PMDB, PSDB, PPS, PSB, PROS e PDT). Para o senador Jacques Wagner (PT-BA), Ciro, que já foi ministro do governo Lula, com este posicionamento estratégico, presta um “desserviço à democracia”. Segundo o senador baiano, “ele acha que vai ganhar os votos da extrema-direita com essas críticas levianas a Lula”. Também como já afirmaram recentemente o governador Flávio Dino (PSB – MA) e Carlos Siqueira, presidente nacional do PSB, o inimigo a ser vencido é Bolsonaro e o fascismo do qual ele é portador: não se pode admitir baboseiras nesse momento tão grave.

Pretendente a candidato de uma dita “terceira via” em formação pela batuta da Rede Globo, Ciro Gomes escolheu centrar fogo em Lula e no PT para convencer o eleitorado de Bolsonaro de que seria ele o mais confiável para derrotar Lula em 2022. Segundo o professor Valter Pomar, Ciro não se contenta apenas em vomitar impropérios, mas objetiva um modelo de desenvolvimento nacional no qual o povo seja um mero subalterno. E para garantir essa subalternidade popular, ele precisa neutralizar a esquerda. Ou seja, Ciro segue a cartilha neofascista desenvolvida desde o Golpe de 2016. Assim, seu ódio a Lula e ao PT não deixam nada a dever ao bolsonarismo. Logicamente, se puder, ele vai botar para quebrar em cima daqueles por ele odiados.

Mas o que chama atenção nisso tudo são certos políticos petistas cearenses, da envergadura do governador Camilo Santana (PT-CE) ou o deputado federal José Guimarães (PT-CE), tratarem Ciro como um aliado malcriado, emudecendo peremptoriamente diante de seus continuados ataques estratégicos à Lula e ao PT. Como acenou Pomar em seu artigo no Blog Brasil 247, o silêncio desses políticos e lideranças petistas cearenses, só Freud explica. Ou quem sabe, um pouco de conhecimento da História e da Ciência Política também.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .