SIMPLESMENTE JOSÉ OU MESTRE OLAVO (Parte II) – Xykolu

 

Era fim de junho, em ano de invernada, água em abundância e mesa farta. O sertão de verde se vestia. E o bom sertanejo esbanjava alegria.

Arrastava-se, modorrenta e preguiçosa, a segunda-feira véspera do dia consagrado a Pedro, a pedra escolhida pelo Filho do Homem para, sobre ela, erigir a sua Igreja. Fim de tarde: o sol, em bocejos de indolência, espargiu seus derradeiros raios, débeis e fugazes, e, numa vermelhidão deslumbrante, de rara beleza, privativa da realeza, despediu-se de sua multiforme vassalagem e mergulhou, soberano ainda, no ostracismo noturno, por detrás de verdejantes montanhas, lá onde a linha do horizonte, favorecida pelo formato do céu em abóbada, parecia até a terra trazê-lo.

Fez-se a noite. As trevas invadiram paulatinamente todo o universo sertanejo. Ainda não havia sequer a perspectiva da iluminação artificial. A lua, já fechando a fase minguante, surgia, lá no alto, como uma fina aliança, quase-nova, sem brilho, opacidade nas entranhas, inexpressiva. E as cintilantes estrelas, de tamanhos vários, aformoseavam o céu, ora desnudo de nuvens e revestido de manto azul-escuro, tão escuro que revelava tons de enegrecimento.

E o sertanejo, agradecido, promoveu, na sua inabalável simplicidade e com incontida alegria, os festejos costumeiros da noite de vigília a Pedro. Identicamente à de João, bem recente, não se via uma única casa, por mais simplória e humilde que fosse, em cujo terreiro frontal não se ouvisse o crepitar de lenha a queimar, não se propagassem a luz e o calor de uma fogueira em chamas. E os anjos e os santos puderam vislumbrar, lá de cima, uma faixa de terra às escuras, com pequeninos e variegados focos de tremeluzentes luzinhas, numa rara espécie de imitação do firmamento estelar. Era como se o chão, a seu modo, pretendesse refletir o céu.  

Do lado de cá do Mazagão, ora silencioso e calmo, o clã dos Gonçalves reuniu familiares e amigos para animada cantoria – dois repentistas de competência reconhecida na região versejando, na toada vibrante de violas de cinco cordas, mourões e martelos e galopes, em desafios estimulados por motes como este: “Se um sonho lá na frente não existir / Quem de nós do canto haverá de sair?”, propostos por amantes da arte, dess’arte –, seguida de um forró autêntico, com sanfona, zabumba e triângulo e arrasta-pé e bate-coxa, na casa de Petrina [Petronília, no registro oficial] – tinha de ter alguma relação com “pedra” –, construída à margem do rio, cujas águas barrentas nas enchentes costumavam beijar levemente a base em rochas da alta calçada lateral. 

A ampla fronde de velho cajueiro, cujos galhos recurvados teimavam em adentrar o alpendre frontal, agasalhava e protegia as conversas, os sussurros, os disse me disse, os sorrisos – alguns maliciosos, outros certamente não –, os abraços, os olhares oblíquos, os flertes, os namoros e, obviamente, as múltiplas manifestações folclóricas típicas dos festejos juninos, incluindo a sempre empolgante e multicolorida quadrilha. Ao derredor do tronco exuberante e sob a luz de lampiões a gás trazidos, por empréstimo, de alguma unidade comercial da cidade, vendiam-se, em mesas de madeira bem arrumadas, comidas e bebidas peculiares à época: do bolo de batata ao milho verde – cozido ou assado –, do aluá no pote a generosas doses da boa e velha cana. Mais adiante, do outro lado da estradinha de acesso à casa, uma estrepitosa fogueira atraía a atenção da meninada, mais um dos seus ambientes preferidos para algumas de suas traquinagens. [Outra delas: mandar sapo à lua. Como? Explico: usava-se uma pequena lata vazia e sem tampa – no caso concreto, a de dois quilos de gordura de coco, redonda e de pouca profundidade; faziam-se quatro furos nas bordas, mais ou menos equidistantes, por eles passando pedaços de cordão com nós internos; virava-se a lata de borco; pegava-se à mão um sapo adulto, acomodando-o de papo na lata emborcada e atando-o a ela com os cordões; posicionava-se este apetrecho em local estratégico, de baixo risco; introduzia-se no seu bojo um rasga-lata ou cabeça-de-nego ou torpedo, com a ponta de queima  (fósforo) para fora; com um graveto em chamas, acionava-se o disparador; e bum! Alguém sempre perguntava: – Cadê o sapo, travesso menino? Outro alguém sempre respondia: – Deve ter chegado ao seu destino!]. De vez em quando, via-se um filete vermelho rasgar a escuridão em direção às estrelas, logo seguido pelo estalido de bomba – eram os foguetões ou artefatos explosivos de pequeno porte e estampido seco e forte, atados a varetas de marmeleiro de mais ou menos um metro, cujos manuseio e lançamento exigiam uma técnica específica, dominada por poucos, que assegurava o pipoco lá em cima, no ápice da trajetória. 

E eu estive lá, a noite toda, ou quase toda, até que o sono e o cansaço me derrubaram no fundo de uma rede armada num dos quartos da casa da irmã de meu pai. Acordei no fim da madrugada, a terça quase nascendo, sob o barulho delicioso que os pingos de uma chuva temporã provocavam ao projetar-se nas telhas de barro. Ao longe, o coaxar dos sapos. Ao pé da janela, uma galinha protegia sua ninhada de pintos que não paravam de piar. O clima ameno encheu-me de preguiça e no aconchego da rede, envolto em lençol de chita, permaneci como se dormindo ainda estivesse. E o sol, esplendoroso, raiou; e o sertão, preguiçoso, acordou.

No lado de lá do Mazagão, o cotidiano a todos envolvia.

E eu, na minha lerdeza de entendimentos ou no desinteresse de pré-adolescente pelo que ocorria fora do meu mundo bem particular ou para além das minhas estripulias, precisei de uma semana para perceber que o respeitável Francisco, o meu avô materno e de quem herdei o primeiro nome – se hoje Xyko sou, assim estilizado, dele tornei-me eterno devedor –, era um exímio contador de histórias, com repertório eclético e diversificado, ou seja, para todos os gostos e faixas etárias diversas (não era raro o encontro, pós-almoço, de homens sentados na mureta do alpendre, alguns recostados nas colunas de sustentação do telhado, todos com a atenção voltada para o ex-seringueiro, ele, bem acomodado na sua espreguiçadeira, a diverti-los, entre deliciosas cachimbadas, com vivências na floresta e causos quase todos extraordinários.).

Todo domingo, levantava-se muito cedo. Desfrutava de um banho de cuia com água do açude, dormida em tanque de alvenaria; tomava um magro café da manhã, guarnecido com apenas uma fatia de pão-de-milho ou tapioca fina e média; encilhava o cavalo alazão, outra grande paixão sua; vestia a melhor roupa em mescla azul; calçava as alpercatas de couro; e, com chapéu de palha protegendo a alva cabeleira e chicote na mão apenas para compor um perfil próprio, alçava a montaria apoiando o pé esquerdo no estribo e segurando as rédeas com a mão que se firmava no cepilho ou parte frontal da sela. Então, juntava-se ao comboio de quatro ou cinco amigos e seguia viagem de duas léguas, com destino à matriz de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira de Capistrano. Lá, assistia à missa das oito, efetuava suas doações à paróquia, trocava uns dedos de prosa com velhos conhecidos, descia até à rua do comércio, fazia umas pequenas compras e, com os parceiros de estrada, retornava à sua casa, ali chegando já quase na hora do almoço.

A sesta de todo dia na espreguiçadeira ocorria, após uma xícara de café preto e forte e algumas baforadas de cachimbo. Hypnos, o deus do sono, certamente vinha da Grécia antiga trazido pelas asas do vento que varria o alpendre e se esparramava pelo mundo afora. E o sertão imergia numa pasmaceira de dar dó… era um silêncio só.

Quando o sol entrava em fase de acabrunhamento, em órbita declinante, o terreiro que dava acesso à casa do vô Francisco assombreava-se. Os netos e amigos iam aos poucos chegando, formando um grupo de cerca de trinta meninos e meninas e tomando assento em bancos e tamboretes. As mulheres, então, distribuíam guaraná em copos de alumínio e bolachas “cream cracker”, popularmente conhecidas como “água e sal”. Forrávamos o bucho que logo se manifestava com incontidos e quase inaudíveis arrotos. Em seguida, o silêncio dominava o ambiente e ele, o avô de todos nós, sentado na espreguiçadeira agora instalada na calçada, demonstrava toda a sua competência na arte de contar histórias. Três delas ainda guardo na memória, sob o zelo amoroso do coração já quase septuagenário.

Prescientes leitoras e leitores, permitam-me que aqui eu as conte, mesmo que isso equivalha a um espichamento de conversa.

Uma: acreditem se quiserem. Já na função de gerente, ou “braço direito” do seringalista e dono do seringal, recebeu dele a ordem de transferir o barracão para outra colocação, outra área da floresta, descoberta pelo mateiro e identificada como de maior número de seringueiras, o que garantia, além de maior produção, o alongamento temporal no processo extrativista. A mudança envolveu a todos, incluindo caixeiro, guarda-livros, comboieiros, num trajeto através de varadouros que interligavam vários seringais, concluído após três dias de dura caminhada. Logo na primeira noite, acamparam em clareira já aberta no seio da floresta, tudo conforme o plano sugerido pelo mateiro e acolhido pelos gestores do grupo. Depositaram no chão, ao longo de um tronco de árvore recentemente derrubada, esquecida em meio à folhagem do mato rasteiro, toda a carga retirada dos lombos dos animais. Acenderam uma fogueira no meio da clareira. Acomodaram-se em círculo e adormeceram. Manhã cedo, perceberam que alguns caixotes estavam em desordem e até virados. E o tronco da árvore havia desaparecido. Os homens se entreolharam estupefatos. Ação do Capiroto? do Ferrabraz? Benzeram-se, o olhar direcionado para a copa das árvores, e um friozinho arrepiante subindo ou descendo – não se sabe bem – pela coluna vertebral de quase todos. Ele, o gerente, pegou a foice de cabo longo e perfez uma curta caminhada, seguindo a intuição e alguns poucos detalhes por ele observados. Ao retornar, acalmou os seus homens: – Não se preocupem. Era apenas uma enorme cobra que, após descanso natural, prosseguiu viagem. E uma voz vinda do lado de lá do braseiro – antes fogueira – ecoou no matagal: – Deus meu, protegei-me! E os outros complementaram: – E a nós também. Então, retomaram a viagem com destino à nova casa, ou melhor, ao local escolhido para o novo barracão. 

Duas: narrativa extraordinária, surreal. O seringueiro, acostumado ao trabalho solitário, após a recolha do látex extraído e a formação das pelas de borracha, seguia, tranquilo, cantarolando alguma canção que lembrava a sua terra natal ou a sua gente, pelo varadouro que ia dar nas margens do rio, ponto de encontro com o comboieiro e de entrega da produção a ser levada ao seringalista ou “coronel de barranco”. De repente, depara com uma onça adulta, de grande porte, que, sentada nas patas traseiras, a umas dez passadas adiante, fecha-lhe a passagem. Nessas horas, só muita calma. Finca no solo o pontiagudo facão que sempre conduz à mão. Lentamente recolhe a espingarda agasalhada no ombro, empunha-a e aponta-a para a fera, que se mantém inalterada, o olhar fixo nele. Faz a mira, arma o gatilho. Sabe que não pode errar. Entrementes, algo esquisito acontece: o animal, como se gente fosse, dirige-lhe a palavra: – Não tenho a intenção de lhe fazer mal; portanto, guarde a sua arma e me deixe passar. Sem se apavorar, nem se deixar impressionar pelo inusitado da situação, o homem desarma o gatilho, devolve a arma ao ombro e, com o facão, abre uma picada perpendicular à margem direita da vereda, avançando mais e mais para o centro da mata. Quando se percebeu em lugar seguro, olhou para trás e viu passar, com naturalidade, num quase desfile, uma enorme onça aparentemente prenhe.

Três: história de Trancoso, de autoria desconhecida, recolhida ao vento. Contou-lhe, numa das muitas noites de insônia, um brabo, recém-chegado ao seringal. Agora a voz é do meu avô: “Era uma vez um rei poderoso, de muitas fortunas e habilidades, muito dedicado aos seus súditos que a ele confiavam sempre os seus problemas considerados insolúveis, certos de que com ele tudo, tudo mesmo, se resolvia. Um dia, percebendo que a procura por ele não era mais a mesma, quase já não mais existindo, encarregou o seu homem de confiança a descobrir o que estava acontecendo, a desvendar o mistério. Alguns dias depois, o poderoso rei foi informado de que aparecera na corte um jovem artífice, de competência louvada e cantada em versos, que, por oferecer solução para tudo, desviara para si a antes demanda real. Temendo perder o posto e pôr em risco o trono, exigiu que trouxessem à sua presença o agora indigitado jovem. Então, deu-se o inevitável interrogatório:  – Qual o seu nome? – Meu nome é Olavo. Chamam-me de mestre Olavo. – É verdade o que dizem por aí? – Perdão, majestade. Mas o que dizem? – Que você resolve todo e qualquer problema que, por acaso, lhe for apresentado? – Isso é verdade. – Então, você quer ser igual ou até melhor que o seu rei? – Não, majestade. Isso não. Eu apenas pretendo ser útil. – Não é bem o que me parece. Levantando-se do trono, o rei aproximou-se do mestre. E lhe disse: – Estou com um problema complicado, acho até sem solução. Eu quero construir uma casa no céu. Você seria capaz de resolver isso pra mim? Mestre Olavo se sentiu num beco sem saída. Se dissesse não, no mínimo seria banido do reino, com uma mão na frente e outra atrás. Pedindo desculpas, perguntou: – Já há uma planta?Sim. Respondeu-lhe o rei, ordenando que a entregassem ao artífice que, com o papiro (o papel de antigamente) nas mãos, rogou lhe dessem um tempo para exame e avaliação. Logo retornou à presença do rei que o inquiriu: – O que tens a me dizer, ó jovem? E mestre Olavo, encerrou magistralmente a questão: – Majestade, eu vou construir a sua casa no céu. Começo os trabalhos tão logo o senhor mande encostar o material no local da obra.”

O vô dirigiu o olhar para mim. Então, falou:         

– Você é Francisco, como eu. Seu irmão mais velho é José, como o seu avô paterno. Ainda pequeno, percebi ser ele inteligente e criativo. Engenhoso em tudo o que fazia. Dei-lhe, então, o nome de Olavo, mestre Olavo. E é isso que, na verdade, ele vai ser.

E é.

À boquinha da noite, já sob a iluminação bruxuleante de candeeiros, as mulheres voltaram ao terreiro que dava acesso à casa do vô Francisco. Era a hora das preces, das orações, dos agradecimentos, dos pedidos. Por um breve momento, nós nos sentimos muito próximos do Altíssimo. Assim seja.     

 

      

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

Mais do autor

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.