La Boétie morreu jovem, quase aos trinta e três anos de idade; foi amigo de Michel de Montaigne, que lhe fez uma homenagem versando sobre a amizade. Esse jovem parece ser o primeiro degrau de quem quiser compreender, ou ao menos se questionar como o poder atua também conforme um alheamento voluntário dos indivíduos. No nascedouro do pacto estatal moderno, Boétie questiona a servidão voluntária da própria potência intrínseca em cada um. Saltos para além dele podem ser dados, mas o que mais me assusta são dois dragões: o saber-poder científico 5G e as relações de valor que fazem essa potência esmagar os ombros do faltante, do que alheou seu desejo a outrem, e no final das contas todos alheamos nosso desejo não apenas ao Leviatã do Estado como também ao fantasma Mefistófeles do Capital.
Marx escreve no primeiro prefácio do seu livro de crítica da economia política, O Capital (1867), o seguinte dito latino: Le mort saisit le vif, que significa “o morto tolhe o vivo”. No prefácio, ele está situando a situação paradoxal do desenvolvimento capitalista: “(…) a Alemanha, como o resto da parte ocidental do Continente Europeu, é atormentada não apenas pelo desenvolvimento da produção capitalista, mas também pela carência desse desenvolvimento”. Não é aqui o momento de discutir a autocontradição que levou esse regime de acumulação à condição de último império, aquele que conquistou, mediante anomia, quase todo o nomos da Terra. Le mort saisit le vif também aparece no ensaio O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escrito por Marx para dar conta do que foi a experiência da Primavera dos Povos em 1848 na França e o significado da reação que levou três anos depois Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão (mas sem as mesmas qualidades do tio), a dar um golpe de estado e instaurar um regime que durou vinte anos, o chamado Segundo Império. Interessante notar é que, já na abertura do texto, Marx inscreve o mesmo problema: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”.
Marx está se referindo, aí, a como os homens do presente precisam sempre recorrer a experiências ou figuras do passado ante a iminência de situações perigosas e transformadoras, revolucionárias. Ora, a Revolução Francesa, mesmo instaurando o calendário da Revolução a partir do seu dia primeiro, precisou recorrer a modelos do passado; mas não apenas ela, a modernidade parece ser esse intricado de arcaico e moderno: “Assim, Lutero disfarçou-se de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 vestiu alternadamente a roupagem da República Romana e do Império Romano, e a revolução de 1848 nada soube fazer de melhor que parodiar aqui 1789 e ali a tradição revolucionária de 1793 a 1795”. É que esqueci de dizer, Marx abre seu texto que trata de revolução e contrarrevolução, insurgência e contrainsurgência dizendo que é preciso saber discernir dialeticamente tragédia e farsa, comédia, dando assim um outro teor narrativo à filosofia da história hegeliana: “Hegel observa algures que todos os grandes fatos e personagens da história universal aparecem, por assim dizer, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia e a outra como farsa”.
Em Marx também está inscrito um paradoxo, como em seu tempo (nosso no sentido de que este é o tempo dominante), em especial para o que estamos tratando aqui: ainda que critique a modernidade carrega consigo sua insígnia, o novo. É no esforço colossal de parir o novo que a crítica do le mort saisit le vif estabelece como tarefa da revolução proletária retirar sua poesia não do passado, mas do futuro: “A revolução social do século XIX não pode tirar a sua poesia do passado, mas apenas do futuro”. Um traço completamente distinto se pode encontrar em Walter Benjamin, pensador judeu-alemão, para o qual a revolução não é nem a parteira do novo, mas freio de emergência, nem mesmo possui poesia a retirar do futuro; nas teses Sobre o conceito de história (1940) sua esperança é retirada do passado, mais especificamente da tradição dos oprimidos, de toda uma memória de resistência daqueles que tombaram na história humana que até aqui encontra na exceção a sua regra. Benjamin presenciou a primeira guerra mundial, o avanço nazifascista e todo o trauma experimentado no centro europeu na primeira metade do século XX, tomando uma alta dosagem de morfina nos Pirineus em 1940, aos 48 anos de idade, fugindo da Gestapo que acabara de ocupar a França, sua morada desde alguns anos. Benjamin não podia enxergar da mesma forma que Marx, sua melancolia histórica fazia jus a seu tempo.
A servidão voluntária poderia nos remeter de volta ao presente, ao problema de como optamos por um ultraneoliberalismo miliciano conservador pseudorreligioso; o 18 Brumário nos daria a infame repetição de ver três anos após as insurgências de 2013 – que tiveram como principal marca a horizontalidade, a ação direta e o anonimato – a derrubada institucional (impeachment) em 2016 de Dilma Rousseff e, no ano seguinte, Michel Temer apresenta a PEC 241, a do teto dos gastos, que congela por 20 anos os gastos públicos; Walter Benjamin nos convidaria à pergunta de se ao anjo melancólico da história ainda é possível “deter-se para acordar os mortos [tradição dos oprimidos, suas memórias de luta] e juntar os fragmentos”. E, enfim, o teor apocalíptico das mortes por Covid-19 – que já se equiparam ao número de mortos pelas bombas atômicas na segunda guerra mundial – nos faz lembrar um poeta estranhíssimo chamado Augusto dos Anjos, que parece pedir um outro olhar sobre a potencialidade crítica de seus versos: “É a Morte — esta carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo que acha no caminho, come…/ — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!”.