Como James Bond, serviços públicos de qualidade podem salvar ou matar (XXI)

Um personagem interessante da literatura, que o cinema projetou para o estrelato e para a popularidade planetária, é James Bond, o agente 007, criado por Ian Fleming nos anos 50. Os livros e os filmes capricham na descrição do fictício agente secreto do governo britânico: forte, elegante, hábitos sofisticados, humor fino, jeito com as mulheres e mentalmente ágil. A pedra de toque do seu perfil vem com a informação de que ele recebeu de Sua Majestade licença para matar. Aqui e ali, se insinua que ele tem a admiração pessoal da Rainha da Inglaterra, mas as obras (o filme e o livro) só o mostram em contato com membros do ministério, o que torna ainda mais verossímil a estória (o escalão mais alto não suja as mãos).

James usa sua licença e mata de diversas maneiras, sempre com frieza, com simplicidade, de forma regular e quase natural. Tanto faz que seja com as mãos, com um punhal ou com revólver, é sempre um gesto aceitável pela audiência. Na verdade, toda a audiência adere ao agente e encara o assassinato como um gesto profissional, necessário, indispensável. Ele diz que mata pela integridade do Império Britânico, mas cada um na platéia sente que ele também mata por nós, tamanha é a adesão.

A ideia de que o Estado é capaz de dar a alguém a licença para matar gruda na gente como uma cola, da qual você deve fazer tudo para se livrar, nem que seja escrever um artigo em forma de descarrego.

A história mostra que a licença para matar é usada ao longo de toda a sua extensão. Para falar de casos mais explícitos e mais recentes, o russo Stalin teria trucidado milhões para proteger a sua revolução. O alemão Hitler, sabe-se, matou industrialmente milhões de judeus. O chinês Mao levou à morte pela fome outros milhões com sua revolução dentro da revolução. O espanhol Franco, o português Salazar, os generais-presidentes de países latinos…a lista é imensa.

Literalmente, consta que o presidente dos Estados Unidos, a mais estável e admirada das democracias ocidentais, assinou nos últimos sete anos mais de trezentas autorizações formais de ataques de drones (mais uma maravilhosa inovação tecnológica que se direciona para o assassinato de pessoas), que resultaram na morte de mais de mil e quinhentas pessoas em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Sim, a referência é ao presidente Barack Obama, ganhador precoce do Prêmio Nobel da Paz.

O Estado mata e manda matar, aqui, ali e alhures, com razões e justificativas as mais diversas, de formas rápidas ou lentas, sutil ou abertamente, diretamente ou usando os braços de terceiros, os exemplos são fartos.

Vê-se: não é preciso estar em guerra para usar a licença para matar. E os mortos não precisam ser inimigos. Na verdade nem precisam ser adversários reais. Eles podem ser “alvos simbólicos”. O que isso significa? Alguma coisa como “bodes expiatórios”. Podem ser os comunistas, os pagãos, os burgueses, os pobres, os barões, os judeus, o poderoso de plantão escolhe um grupo e estigmatiza-o, usando o poder do Estado. Depois age para eliminá-lo.

Essa “eliminação” não precisa mais ser de forma aberta e direta, com soldados, feita com armas de fogo ou câmaras de gás. Há formas mais sutis e econômicas (mas não menos eficazes) de promover essa, digamos, higienização. Às vezes, basta o Estado omitir-se. Ocasionalmente, pode atrasar uma vacina ou cancelar um programa de saúde. Talvez, afrouxar as políticas sociais ou (noutro extremo) arrochar a repressão policial, paralisar o poder judiciário, retardar algumas leis, patrocinar a violência pela mídia.

Toda ação (ou omissão) do Estado é, em certa medida,  algum tipo de serviço público. A ausência ou a presença do serviço público pode matar na mesma dimensão que pode salvar. Acontece de forma sutil, mas não menos efetiva.

Mata-se, hoje, com o poder do Estado, tão bem quanto o agente secreto a serviço de Sua Majestade. Não se pode dizer que a sociedade adere e torce, seria, talvez, injusto. Mas é justo dizer que ela se cala.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.