O orçamento do Brasil é proposto pela presidência da República, que o encaminha para debate e votação (com ou sem emendas) pelo deputados federais na Câmara Federal. O orçamento dos Estados é proposto pelos governadores e encaminhado às assembleias legislativas para análise dos deputados estaduais, o das cidades é proposto pelos prefeitos e votado nas câmaras municipais (pelos vereadores).
Uma dinheirama. Um presidente, 27 governadores, 5.565 prefeitos. Orçamento do país: perto de 1,4 trilhão de reais; o orçamento anual de um Estado como o Ceará gira em torno de vinte bilhões de reais e o orçamento de uma cidade como Fortaleza, em torno de cinco bilhões de reais. É muito poder de gastar nas mãos de poucas pessoas, por isso é preciso que elas (presidente, governadores e prefeitos) sejam escolhidas pelo voto do cidadão. Por isso que é necessário que um poder (o legislativo – vereadores, deputados e senadores também escolhidos pelo povo) diferente o debata e aprove. Mas, principalmente, por isso deveriam ser objeto de discussão nas instâncias da sociedade civil organizada (imprensa, entidades empresariais, entidades sindicais, universidade…).
O orçamento é o exercício pleno e absoluto do poder. É o ponto de encontro decisivo do poder com o dinheiro. É o orçamento quem diz quais são as verdadeiras prioridades e quais são as falsas prioridades. É o orçamento quem pode dizer e provar o que do discurso não se tornou prática. É o orçamento quem faz do poder executivo um poder desproporcionalmente maior do que os outros dois. O orçamento é quem diz de que bolso sairá o dinheiro, e para qual bolso irá o dinheiro.
Infelizmente, a sociedade não se habituou a ler, entender e debater o orçamento. A imprensa trata o assunto com superficialidade imensa e com total parcialidade, quem sabe o motivo é que sequer consegue entender e traduzir para seu público. Os governantes capricham de forma sutil em fazer do orçamento uma peça hermética, técnica, complexa, impenetrável, assim ficam confortáveis para mentir ou dizer meias verdades. Entidades empresariais focam apenas nos seus interesses específicos, o que é natural e legítimo. Mais ou menos o mesmo acontece com as entidades de trabalhadores (essas menos equipadas para uma leitura acurada). A universidade sempre fugiu do tema, sabe-se lá porque.
Sem assistência, sem acesso facilitado a peças didáticas e simples e sem qualquer canal ou fórum institucionalizado de informação e discussão, o cidadão pouco ou nada sabe, apenas recebe “flashes” de conceitos vagos, referência a números soltos e descontextualizados, lê e ouve na imprensa a repetição de chichês e chavões especialmente convenientes, que só interessam a poucos.
Há uns doze anos, quando um partido de esquerda e dito popular chegou ao poder, era razoável e justo se esperar que essas práticas (e essas omissões) mudassem. Nada ocorreu, só frustração. Como se diz por aí, a esquerda se endireita quando chega ao poder, e vira despachante dos ricos e dos efetivamente ainda mais poderosos. Sim, parece haver (e há) um poder maior e mais alto que o poder formal.
Em dias bem recentes, a presidente da República mandou um orçamento deficitário para o Congresso. A medida podia ter duas faces. Uma face: um debate profundo se impunha sobre os impostos e sobre os gastos. A outra face: a reação dos “mercados”, que se manifesta sob a forma de reação política. Sim, a política se materializa nas questões de dinheiro.
Só uma face prevaleceu: a dos mercados. E o governo recuou, e recuou sem qualquer discussão mais séria, sem qualquer debate mais honesto.
O estamento político, a imprensa tradicional e os “especialistas” (leia-se economistas e jornalistas que se colocam sempre do mesmo lado, sempre com a mesma perspectiva), sem falar das entidades empresariais mais articuladas, dirigem o foco para um único ângulo da questão, todo marcado por velhos clichês.
A crise, toda crise real, costuma ser a parteira do novo, de uma nova ordem. Se a crise é falsa, ou sendo verdadeira, pode ser manipulada, o novo não acontece, o novo não se estabelece. E a velha ordem vence, e se impõe.
O país está vendo passar mais uma oportunidade de conhecer-se, de saber quem é quem. Uma pena.