No campo da literatura e de outras artes, há algum tempo, premiações e honrarias deixaram de representar, necessariamente, a qualidade de obras e autores. Muito pelo contrário, carregadas de subjetivações e interesses estranhos à matéria de que tratam, essas distinções mais refletem relações de compadrio e motivações escusas, que critério e rigor sobre a coisa avaliada.
Faço essa introdução, um tanto amarga, dirão, e como a incorrer em contradição, para exaltar dois livros vencedores da 66ª edição do Prêmio Jabuti, 2023, cujo resultado foi divulgado nesta semana: “Sempre Paris, crônica de uma cidade, seus escritores e artistas” (Companhia Das Letras, 2023), de Rosa Freire d’Aguiar, e “Salvar o fogo” (Todavia, 2023), de Itamar Vieira Junior.
Li-os mal saídos da fornada, lá pelo início do ano, e considero merecedores da premiação e do prestígio de seus autores. De Itamar, já se tornou clássico o romance “Torto Arado”, agora adaptado para o teatro com o musical a fazer sucesso em São Paulo.
“Salvar o fogo”, preservando a mesma pegada do romance de estreia de Itamar Vieira Junior, a denúncia das relações de dominação vigentes no Nordeste brasileiro, ganha formato novo e densidade dramática ao tratar da luta de uma mulher (Luzia do Paraguaçu) contra injustiças impensáveis, estigmatizada entre a população por supostos poderes sobrenaturais. Lavadeira do mosteiro na região, Luzia adota como filho o órfão Moisés, a quem educa sob os rigores de uma religiosidade que extrapola os limites da razão, bem ao gosto dos fundamentalismos de hoje, mas com sabor e poesia. Livro denso, profundo, que transita do épico ao lírico com a leveza e a habilidade de um contador de histórias que já conquistou, por merecimento, posição de destaque entre os ficcionistas da atualidade.
Mas é sobre o livro de Rosa Freire d’Aguiar que gostaria de tecer na coluna de hoje algumas considerações. Misto de jornalismo e crônica de memória, “Sempre Paris” é um relato sensível e atento, para não falar de suas imensas qualidades de linguagem, sobre a temporada da autora na capital francesa dos anos 70 até 1990.
É disso, por exemplo, que trata a parte introdutória do volume, intitulada “Antes que me esqueça”, uma narrativa marcada por uma capacidade de observação notável, a que se soma o estilo elegante da escrita de Rosa Freire.
Aos que conhecem Paris, ou se assumem apaixonados pela cultura francesa, o texto (re)conduz com maestria pelas ruas e avenidas, praças, bares, bistrôs e livrarias de uma cidade de fato encantadora, com seus mistérios e seduções, mas acima de tudo com os sortilégios que fazem de Paris a mais desejada das cidades. Que o digam, escritores, pintores, músicos, cantores, atores e intelectuais, políticos, filósofos ou simples “sonhadores” de campos os mais diversos.
De fato, “Paris é uma festa”, como aliás a descreveu em livro memorável o escritor Ernest Hemingway (1899-1961). Vai além, volta-se, ressignificando-os, para acontecimentos históricos da conjuntura internacional: o processo de redemocratização na Espanha; os ataques de Israel aos campos de refugiados palestinos, numa prova consistente de que se trata de tentativas de genocídio recorrentes, a exemplo do que se vê nos dias atuais.
Como a dar voz à própria cidade, a partir de seus habitantes ilustres, franceses ou não, a segunda parte do livro de Rosa Freire d’Aguiar alteia-se em conteúdo intelectual. São entrevistas importantes, originais, surpreendentes, densas, com escritores, filósofos etc., gente de envergadura intelectual e artística: Alberto Cavalcante, Conrad Detrez, Cortázar, Ernesto Sabato, Simenon, Françoise Giroud, Simone Veil, Roland Barthes e Raymond Aron (sua última entrevista), entre outros.
Livro para ler e ter ao alcance da mão. Recomendo.