BONS MOMENTOS
— As ideias dominantes que circulam na imprensa, nas salas de aula, nas discussões parlamentares, nas conversas de botequim – em todo lugar – são sempre formas mais simplificadas de ideias produzidas por grandes pensadores. Daí a importância de recuperar o sentido original dessas ideias que são tão relevantes para nossas vidas ainda que, normalmente, não nos demos conta disso. Afinal, a ciência herda o prestígio da religião, no contexto pré-moderno e assume, em boa parte, pelo menos, o papel de explicar o mundo moderno.
— Essa “pré-modernidade” é o núcleo, nunca explicitado, de noções hoje correntes como “jeitinho brasileiro”; da visão do Brasil e das sociedades latino-americanas como funcionando a partir de uma hierarquia comandada pelo “capital social de relações pessoais”. Seria esse capital de relações com pessoas influentes que constituiria tanto o “personalismo”, ou seja, relações de favor/proteção enquanto fundamento da hierarquia social; quanto o “patrimonialismo”, isto é, uma vida institucional que tem como fundamento uma “elite estatal”, também pré-moderna, que parasitaria toda a sociedade.
— A forma dominante de se perceber a política no Brasil foi produto de intelectuais cujas “ideias” foram associadas, de modo intencional ou não, a “interesses” poderosos. Depois de institucionalizadas, essas ideias ganham vida própria e “esquecem” sua gênese, passando a influenciar a pauta dos jornais e a imaginação dos políticos e homens de ação.
— O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto) construída como uma suposta evidência da singularidade histórica e cultural brasileira. É apenas o “Estado” que passa a ser percebido como o fundamento material e simbólico do patrimonialismo brasileiro. Ora, se somos todos “cordiais”, por que apenas quando estamos no Estado desenvolvemos as consequências patológicas dessa nossa “herança maldita”? Por que o mercado, por exemplo, não é percebido do mesmo modo? E por que, inclusive, o mercado é, ao contrário, visto como a principal vítima da ação parasitária estatal?
— À personalização, subjetivação e simplificação do Estado na noção de “estamento estatal” todo-poderoso é acrescentada uma teatralização da política como ópera-bufa; deixamos de ter “interesses e ideias em conflito” e passamos a ter um mundo político dividido entre “honestos” e “corruptos”.
— É possível demonstrar que tanto a hierarquia social quanto a legitimação dessa mesma hierarquia são realizadas de modo muito semelhantes em todas as sociedades modernas, sejam centrais ou periféricas. Existe todo um caminho a ser percorrido para a construção de uma sociologia crítica contemporânea que seja capaz de ser fundada em outro terreno que não o do preconceito travestido de evidência científica…hoje em dia, boa parte dos interesses que não se podem exercer à luz do di é legitimada pela própria ciência que deveria denunciá-los.
— Em fases de crise, como agora, quando “a farofa é pouca e todo mundo quer o pirão primeiro”, então os mais ricos querem cortar os investimentos sociais e ficar com o Estado só para eles. E esta história tem larga tradição entre nós. Ela funciona do mesmo modo desde o início do século XX – quando o Brasil começa a se transformar em sociedade urbana e industrial – e reúne os mesmos elementos desde o princípio: imprensa, setores moralistas da classe méia e interventores da ordem constitucional.
— As classes populares não são apenas despossuídas dos capitais que pré-decidem a hierarquia social. Paira sobre elas também o fantasma de sua incapacidade de “ser gente” e o estigma de ser “indigno”. As classes com essa “insegurança generalizada”, como a ralé e boa parte dos “batalhadores”, estão divididas internamente entre o “pobre honesto”, que aceita as regras do jogo que o excluem, e o “pobre delinquente”, o bandido no caso do homem, e a prostituta no caso da mulher. A maioria esmagadora das famílias pobres convive com essa sombra e essa ameaça…
CURTAS
— O objetivo de um “mito nacional” é produzir solidariedade social ao criar um elo comum entre os nacionais, ainda que seja produto da fantasia. O necessário é que as pessoas “acreditem nele”. O “mito”, portanto, não possui compromisso com a “procura da verdade”, o que o diferencia da ciência.
— O que dizer do empresariado brasileiro, especialmente o paulista, que foi, no caso brasileiro, o principal beneficiário do processo de industrialização financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte do “estamento” estatal? Deveria ser, pois foi quem mais ganhou com o suposto “Estado patrimonial” brasileiro.
— A única questão razoável é saber se o Estado é apropriado por uma pequena minoria privilegiada ou se pelo interesse da maioria.
— Se Buarque falava nos anos 1930, quando o Brasil engatinhava no seu esforço de modernização, DaMatta repete o mesmo raciocínio no final do século XX, quando o Brasil já tinha dado adeus ao passado rural e construído o maior parque industrial do Hemisfério Sul do globo.
— A classe média também é explorada sem disso se dar conta. Temos aqui preços exorbitantes, pagos especialmente pela classe média verdadeira, para serviços de quinta categoria, como nossa telefonia celular. Nossa taxa de lucro e juros é das maiores do mundo e representa uma forma selvagem de acumulação capitalista.
— O “saque”, como dos campos de petróleo do Oriente Médio sob a batuta das grandes petrolíferas no governo Bush, continua um método cotidiano do capitalismo dito “moderno”, desde que seja exequível militar e politicamente.
— O tema da corrupção só pode ser usado para enganar e manipular porque a definição do que é corrupção é arbitrária e pode ser aplicado ao bel-prazer de quem realiza o ataque.
O AUTOR
Jessé Souza é graduado em Direito e tem mestrado e doutorado em Sociologia. Fez também pós-doutorado em Psicanálise e Filosofia. É professor da Universidade Federal Fluminense e há cerca de um ano preside o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, órgão do governo federal. É autor principal de 23 livros e publicou uma centena de artigos e capítulos de livros em vários idiomas. Tem 55 anos de idade.
A PUBLICAÇÃO
O livro “A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa manipular pela elite” foi publicado em 2015 pela editora Leya, com 271 páginas, prefácio do próprio autor.
CIRCUNSTÂNCIAS
Bem ou mal, certo ou errado, o Brasil experimenta há mais de uma década governo que não se pode dizer exatamente afinado com sua elite tradicional. Circunstancialmente ou não, algumas políticas públicas movimentaram as proporções dos orçamentos e os tamanhos das fatias da pirâmide social e, em tempos bem recentes, a disputa política vive um tenso clima de acirramento. A “crise” deixa à mostra alguns “conflitos de interesses” e disfarça outros. O protagonismo de uns poucos e a indiferença de tantos numa disputa tão decisiva (que ameaça, inclusive, a quebra da normalidade institucional) coloca em discussão todo o pacificado diagnóstico da alma brasileira, segundo as ciências sociais.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
A alma do brasileiro foi fotografada e explicada por ilustres e festejadas figuras da intelectualidade desde a primeira metade do século XX. Gilberto Freyre, com seu livro Casa Grande & Senzala, foi seguido e completado por Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil) e Caio Sérgio Prado (Formação do Brasil Contemporâneo). Seguiram-se inúmeros outros: Celso Furtado, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Roberto DaMatta, entre outros. Mais recentemente, analisando mudanças sociais provocadas por governos ditos de esquerda, Marcelo Neri e Márcio Pochmann. O livro põe em cheque essa espécie de consenso que todos esses autores, de certa forma, ajudaram a construir a partir (principalmente) da base teórica lançada (também no começo do século XX) por Max Webber, para mostrar como a elite manipula a sociedade na defesa de seus interesses e como essa sociedade se submete.
O LIVRO
O livro é breve e está dividido em quatro grandes partes, formadas por dezesseis capítulos curtos. O alemão Max Webber é a figura teórica de destaque ao longo de toda a publicação e, na primeira parte, domina o debate, a partir de suas ideias de dominação e da ascese protestante. Logo, o autor traz a discussão para o Brasil e mostra como a mesma manipulação internacional se repete na dimensão nacional, caracterizando-se num modelo centro-periferia. O “mito nacional” é esmiuçado pelo autor, que percorre as ideias de praticamente todos os intelectuais brasileiros que se dedicaram ao tema.
Patrimonialismo, personalismo, economicismo, classe média, classes populares, elite, culturalismo, culturalismo racista, racismo científico, corrupção, complexo de vira-lata, estado versus mercado, o livro percorre quase toda a pauta das ciências sociais feitas por brasileiros ou não.
Ao final, o autor contextualiza a realidade objetiva atual no quadro teórico construído ao longo do livro e consegue mostrar, efetivamente, como a intelectualidade contribui diretamente para a manipulação da sociedade pela elite e como a movimentação política recente é apenas uma repetição de eventos anteriores.
Respostas de 2
Excelente análise.
Tornou- se meu livro de cabeceira.Sempre retorno a ele.