“A república em transição”, organizada por Joaquim Falcão e Paulo Augusto Franco, é uma coletânea de textos jornalísticos de Raymundo Faoro, enfeixados sob a rubrica “poder e direito no cotidiano da democratização brasileira (1982 a 1988)”. São análises, publicadas na imprensa, da quadra pré-constituinte e constituinte, cujo fruto foi a Constituição Federal, a qual, no próximo dia cinco de outubro, completará trinta anos de promulgação.
Ultimamente, Faoro foi vítima de ataque especulativo contra as suas teses fundamentais de interpretação do Brasil, ressaltando-se suposta insuficiência do seu cânone interpretativo de extração patrimonialista e supostos equívocos conceituais graves a pontuar a sua obra. Evidentemente, a triste sina – a que Faoro não está imune – de quem produz ciência é ver as suas proposições falsificadas, nem se desconhecem lacunas em seus trabalhos. Todavia, se não fora a vênia devida à liberdade de expressão, talvez se qualificasse tal ataque especulativo de verdadeira “tolice”. Contra tal insensatez, os textos reunidos na coletânea em tela constituem verdadeiras pérolas de análise e de interpretação do Brasil, que, guardadas as coisas que mudam, permitem diagnóstico e prescrição que podem orientar o encaminhamento da solução crise brasileira.
A propósito, não se olvide que Faoro é um dos poucos pensadores político-constitucionais brasileiros a importar-se com a problemática do poder constituinte. Na verdade, uma teoria brasileira do poder constituinte é rarefeita, salvando-se Paulo Bonavides, Nélson Saldanha, Gilberto Bercovici e mais um punhado de autores. De um modo geral, os constitucionalistas nacionais focam no impropriamente dito “poder constituinte derivado”, que, em sendo o poder de reformular a constituição (no Brasil, deferido ao Congresso Nacional), é poder constituído, sujeito a limitações jurídicas formais, materiais e circunstanciais. E o poder constituinte “tout court”? Estabeleceu-se aqui aquilo que chamei alhures de uma “teoria francesa de ultramar do poder constituinte”, tal a dependência acrítica e ligeira da formulação do Abade de Sieyès, no século XVIII, vista, de modo geral, pela lente de Georges Burdeau, no século passado.
Fugindo a tal figurino de abandono de uma teoria autóctone do poder constituinte, Faoro desenvolveu ideias sistemáticas sobre o assunto, nomeadamente no livro “Assembleia constituinte: a legitimidade recuperada” (1981) e no capítulo de livro “Constituinte: a verdade e o sofisma” (1985). Na coletânea sob análise, sobretudo a Parte III – A Constituinte e a “transição imaginada” (1985-1987), salienta a sua preocupação com as imagens disputadas em torno da Assembleia Constituinte, com a possibilidade de elaboração de um texto constitucional colado aos princípios de uma ordem democrática. Só uma Constituinte de “baixo para cima” poderia promover a conciliação entre a constituição social e a constituição formal ou jurídica, pensava ele. Mas, apesar das críticas ao constitucionalismo nacional, tinha em mente que “o que há no Brasil de liberal e democrático vem de suas constituintes, e o que há no Brasil de estamental e elitista vem das outorgas, das emendas e dos atos de força”.
Antes da Constituinte de 1987/1988, ressaltara que nunca o Poder Constituinte conseguira, nas suas quatro tentativas, “vencer o aparelhamento de poder, firmemente ancorado ao patrimonialismo de Estado, mas essas investidas foram as únicas que arvoraram a insígnia da luta, liberando energias parcialmente frustradas”. No entanto, considerava que “todos os passos, insuficientes na verdade, no caminho das liberdades e da democracia, nos […] anos de país independente, foram dados pelas constituintes, que legaram à sociedade civil as bandeiras, frustradas e escamoteadas, de sua emancipação”.
Faoro foi um pensador original, criativo e fecundo, qualidades já conhecidas na sua navegação de longo curso, principalmente em “Os donos do poder”. Agora, vislumbra-se que tais qualidades também estão presentes na sua navegação de cabotagem, como bem o demonstra a coletânea “República em transição”.