REAPRENDER A COMEMORAR

Que semelhança essencial existe entre uma assembleia de cristãos que comemoram as principais datas da vida de Cristo, e judeus que festejam a libertação do Egito, com guaranis mbyà ao celebrarem a colheita de sementes crioulas de milho em louvor e agradecimento a Nhanderúetê, ou cidadãos soberanos que solenizam com a promulgação de sua Constituição? 

A etimologia da palavra comemorar é de origem latina – commemorare – e significa trazer à memória. Commemorare também significa com-memorare, isto é, recordarcom, recordarjuntocomoutros, alimentando o coração pela energia que brota do encontro com os semelhantes.

Sociedades não podem criar-se ou recriar-se sem construírem e reconstruírem ideais de vida em comum. No seio de sociedades reais circulam os ideais a partir da visão que seus membros têm delas. Portanto a faculdade de idealizar – possuir ideais – é típica do ser humano, nada tem de misterioso. E em um mundo globalizado, os ideais de convivência precisam ter a capacidade de incluir e envolver a todos os humanos habitantes do Planeta.

Por outro lado, a fé é antes de tudo calor, entusiasmo, exaltação de toda a vida mental, transporte do indivíduo acima de si mesmo. Mas a única fonte de calor na qual uma pessoa pode se aquecer moralmente é aquela formada pela sociedade de nossos iguais, porque as crenças só são ativas quando partilhadas.

Uma pessoa que pressupõe possuir uma verdadeira fé sente a necessidade de espalhá-la. Por isso sai do seu isolamento, aproxima-se de outros buscando convencê-los da fé que possui. E é o ardor das novas convicções suscitadas que irá reconfortar sua convicção original. Portanto, uma pergunta de base no tempo presente é: por onde anda nossa fé? Em que projetos de sociedade acreditamos? Por quais ideais estamos dispostos a nos engajar pessoal e coletivamente?

Uma das importantes publicações do ano de 2020 foi exatamente a Carta Encíclica “Fratelli Tutti”, do Papa Francisco. Um denso documento que trata de forma muito qualificada da amizade social. Entre as advertências apresentadas por Francisco, presentes em ideologias contrárias à construção de uma cultura voltada para um mundo unido, destaca-se a denúncia na qual ele esclarece que para estas ideologias “a melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar a desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se, hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e de pensar, e para isso recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhem a sua parte de verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte” (15).

No Brasil recente esse modelo de dominação política denunciado pelo Papa é materializado pelo bolsonarismo, corrente política de extrema-direita liderada por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, que curiosamente chegou ao poder com forte apoio de setores cristãos católicos e evangélicos (bispos, padres, freiras, freis, leigos, pastores, obreiros, fundadores de movimentos e associações, redes de televisão religiosas), cuja centralidade da ação baseia-se no terror direto e sistemático dirigido a toda e qualquer forma de pensamento que lhe for adverso, como ocorre em seus diversos ataques à liberdade de imprensa, de expressão e de pensamento, ou contra todas as conquistas culturais democráticas desde a Constituição de 1988, como também nos reiterados ataques às minorias sociais de nossa população.

Já no item (18) do referido documento, Papa Francisco atenta para o fato de o neoliberalismo alimentar um modelo estrutural de concentração de riqueza no qual, no mundo, há um pequeno grupo de humanos privilegiados pelo gozo do seu viver sem limites o consumo e o desperdício, em detrimento de uma grande parcela da humanidade tornada sacrificada em seu valor primário de pessoa, pelo fato de serem pobres, idosos ou portadores de deficiência, que não servem, segundo a ideologia neoliberal, mais para viver, são descartáveis. Como tivemos a oportunidade de registrar neste ano por dezenas de vezes em nossos artigos aqui neste site.

As declarações maldosas dos representantes do governo federal brasileiro em relação à pandemia do Covid-19 são um exemplo clássico. Não fosse a ação da Câmara Federal, a ajuda emergencial proposta pelo governo Bolsonaro teria ficado em R$300,00 (trezentos reais). Devido à articulação política dos deputados federais o valor foi aumentado para R$600,00 (seiscentos reais).

O Papa lembra ainda que “cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos de nos constituir como um “nós” que habita a casa comum. E um tal cuidado não interessa aos poderes econômicos que necessitam de ganho rápido. Nesta cultura que se está a desenvolver, vazia, fixada no imediato e sem um projeto comum, é previsível que perante um esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas de novas  reivindicações” (17).

Eis o desafio para 2021: reaprender a comemorar, dando carne a projetos que garantam a vida do “todos nós na casa comum, perguntando-nos com insistência crítica: por onde anda a nossa fé?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .