Raciocinando pela barriga

“O povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual!”

Joãozinho Trinta

​No início dos anos 70, enquanto o pau comia contra os adversários do regime, o povo aplaudia o ditador General Emílio Garrastazu Médici nos estádios de futebol quando ele assistia aos jogos com o ouvido colado num rádio de pilha pretensamente ouvindo a narração radiofônica.

​Eram os tempos nos quais o capitalismo internacional abria os cofres para o endividamento do governo militar como forma de demonstrar ao povo as pretensas vantagens de um governo ditatorial. A cobrança da fatura a esse mesmo povo viria depois de uma forma cruel.

​A análise da frase icônica do carnavalesco Joaozinho Trinta, pode se inserir num contexto metafórico no qual se subentende que o povo, legitimamente, anseia por uma vida de conforto e livre da miséria a que é submetido, enquanto que os intelectuais se debruçam sobre as razões de uma realidade de miséria a que este mesmo povo é submetido.

​Ambos estão corretos nas suas pretensões e posicionamentos, cada um nos seus espaços de interesses, possibilidades e modo de vida.

​Mas é o mesmo Joaozinho Trinta quem disse, também, e acertadamente, que “o dinheiro é a desgraça da humanidade; o dinheiro escreve os maiores dramas”. Ora, o luxo, na sociedade do capital, é comprado com dinheiro, que o povo não tem. Assim, o dinheiro se torna o objeto de desejo inalcançável, juntamente com o desejado luxo.

​Aprendemos, desde criancinha, a pedir dinheiro para comprar o doce desejado. O dinheiro, portanto, não é um fim em si (ainda que seja uma lógica autotélica, voltada para a autovalorização permanente), mas é o meio para que se alcance a realização do desejo, mesmo que inalcançável.

Os governantes, em obediência às ordens do capital, tais quais os vendedores de drogas que viciam os compradores para que se tornem dependentes do consumo de tal mercadoria, viciam o povo no consumismo de todos os tipos de mercadorias, e o ensinam a idolatrar o dinheiro, sem que o povo saiba os malefícios nele contidos.

O povo adora o que não conhece (o dinheiro) na sua essência constitutiva e destrutiva, e age em busca do esplendor de uma vida que idealiza e não tem.

O povo, do mesmo modo que é induzido a adorar o dinheiro, sem saber que se trata de um mecanismo de dominação social e subtração da riqueza socialmente produzido, posto que tais conceitos não lhe são ensinados em nenhuma escola secundária (até mesmo nas universidades e cursos de economia se ensina uma versão mais romântica e artificial do dito cujo), é induzido a apoiar qualquer salvador da pátria que o subjuga, mas desde que este promova a acessibilidade ao pão e ao circo de uma sobrevivência sofrível.

Os militares, após 21 anos, deixaram o poder com inflação alta, estagnação econômica, dívida pública crescente sobre as quais incidem juros pesados, corrupção nas estatais (que aumentaram em números substancialmente, tal qual fazem os governos de esquerda), desemprego estrutural, etc. Caíram pela insatisfação popular, e não pelo nível de consciência social coletiva.

FHC, que se elegeu por ter pretensamente domado a inflação comandada por Pérsio Arida, de fato (que é um confisco de salários que come no mesmo prato da extração de mais-valia), logo depois naufragou com seu neoliberalismo de ocasião.

Lula, que surfou na onda da alta dos preços das commodities e pôde proporcionar alguma melhoria dos empregos, lucros aos bancos e empresários (inclusive de pequeno porte), incrementar programas habitacionais e ajudas financeiras aos desvalidos do capitalismo (que não são poucos), e assim, diminuir o absurdo nível de desigualdade social pobreza extrema existente no Brasil, é graças a isto que ainda vive da memória de tempos menos bicudos que os atuais e pode se reeleger.
Dilma Rousseff, em que pese a sua inabilidade política e alinhamento com o que há de pior na economia e na política brasileira (de Joaquim Levy, Roberto Jefferson a tipos de iguais posturas), pagou caro o ônus de uma fatura inadimplida que pousou no seu colo a partir do seu primeiro mandato e se estendeu até o início do segundo quando a direita lhe defenestrou do poder com um peteleco (ou pedaladeteco).

Mas o capitalismo vive um estágio de crise econômica irreversível, e ambiental mundial que atinge até os países ricos, mas que se reflete na periferia de países como o nosso e outros ainda menos privilegiados de modos absolutamente insuportáveis. Se Lula ganhar, vai administrar a miséria com os critérios capitalistas que ele defende e acredita, e vai apagar da memória popular a sua boa (e falsa) imagem de outrora.

Fico pasmo de observar que todos querem e falam em democracia, e até mesmo os golpistas proclamam o golpe em seu nome (só no Brasil se anuncia um golpe com data marcada, parecendo piada de português com brasileiro).

Quando se fala em democracia, panaceia política usada para enganar o povo que vive sob um regime pretensamente representativo de sua vontade, esquecemos que a economia capitalista é a maior das ditaduras, e que não há regime político soberano sob a égide dos ditames ditatoriais da lógica do capital, expresso na forma valor, objeto da crítica marxiana mais poderosa.

Como vimos dizendo, o capital dá ordens aos seus súditos políticos.

O fechado e ditatorial regime chinês, por exemplo, desde Mao Tse Tung e depois sob Deng Xiaoping e seus seguidores (corrente mais aberta ao capitalismo de mercado), pauta as suas ações de governo de acordo com a lógica capitalista selvagem que pratica.

O China e o seu modelo político de governo ditatorial vai sucumbir juntamente com as regras autofágicas de um modo de mediação social capitalista preservado desde a revolução chinesa em 1949, e posteriormente ampliado, e que agora chega ao seu limite interno de expansão, fenômeno evidenciado pela crescente queda do PIB desde as últimas décadas.

Assim, o povo é levado a raciocinar com a barriga, posicionando-se de modo a que quando esta está razoavelmente cheia, não se furta a gritar “Salve o Rei”, e quando está vazia (como agora, e ainda sem ar, sem água, com fogo nas matas e epidemia virótica persistente), grita uníssono: “Abaixo o Rei”.

Com o perdão do trocadilho fácil, Boçalnaro, o ignaro, é carta fora do baralho!

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;