QUEM GUARDA COM FOME, VEM O GATO E COME, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Sou cria de uma família simples que, empunhando a sua peculiar bandeira da vida, em cujo centro sobressaía o sintagma basilar do seu comportamento – HONESTIDADE E RESPEITO –, floresceu, no decorrer do último século do milênio passado, entre o sertão sempre perplexo mas submisso, tanto ante a excelsa e generosa abundância das safras invernais quanto ante a infernal e dolorosa crueza dos estios escaldantes, e a serra aprazível e sedutora, com seu clima ameno e agradável e com a prodigiosa e plural fartura frutífera, onde, além das fontes naturais cujas águas escorriam por dois cursos fluviais que logo se abraçavam, se irmanavam, se completavam, numa união indissolúvel, exemplo maior da compatibilidade de gênios, uma pintora genial – pra não dizer divinal – produziu um panorâmico quadro de rara beleza, em que expunha os mais variados matizes da cor verde (esperança?!) e que revelavam enormes corredores de frondosos pés de manga, de muitos sabores e formas, de pomares de pés de goiaba, de laranja, de tangerina, de ata (ou fruta-do-conde ou pinha), de jaca, de ciriguela, sem falar nos amplos bananeirais, cafezais e até alguns canaviais.

Encantavam o nosso olhar telúrico as florações dos paus d’arco amarelos que, prenunciadoras das chuvas, adornavam com toques especiais o quadro panorâmico de beleza rara, produto da genialidade de uma artista divinal: a Natureza.

Do sertão, além do espírito de envergadura capaz de enfrentar as vicissitudes da vida e do jeito matuto de ser, com uma boa dose de acanhamento, de timidez, cujo abrandamento se impôs pelo império do tempo e de outras exigências circunstanciais, e outra de espirituosidade congênita (afinal, sou geminiano, filho d’outro!), herdei alguns bons costumes, entre eles os prazeres gustativos ante um fumegante prato de feijão – na água e no sal, como costumavam dizer os meus saudosos “mais velhos”, o que equivalia a desprovido de temperos de toda e qualquer ordem e origem –, quando o arroz branco assumia o secundário papel de adjutório e o caldo, quente por natureza, desempenhava o de coadjuvante, ou melhor, de sobremesa. Do amor ao básico e bom feijão, plantado e colhido nas roças calejadoras, com arroz, beneficiado em pilão de madeira e separado do pó da casca em arremessos ritmados da peneira de taquara para o alto e contra o vento, ainda sobravam espaços para a rapadura com farinha, para o pão de milho com leite ou banhado à nata com café, para o cozido de carneiro com jerimum, quiabo e maxixe, para a galinha caipira à cabidela, para a bem preparada buchada de bode, para a suculenta panelada, para o apetitoso sarrabulho à base de vísceras de porco (que impingia uma cor escura ao “bagaço do engenho”), para o peixe de rio pescado à base de anzol, landuá ou tarrafa e frito na gordura suína.

Paro por aqui porque ouço viscerais roncos de saudades dos idos tempos que não voltarão jamais.

Do pé da serra, outras heranças também concorreram para o processo de construção continuada, sempre inacabada, do ser humano que conscientemente sou, um eterno aprendiz, um misto de defeitos e virtudes, de sonhos e ideais, que se concretizam uns e que se frustram outros. É o caso, por exemplo, da educação, tanto a religiosa quanto a formal, forjadas nas pétreas convicções de meus pais e lapidadas por educadores qualificados – o amor à leitura desde o processo de alfabetização conduzido pela respeitada professorinha municipal e minha mãe; o desempenho exemplar nos anos de primário no Grupo Escolar Monsenhor Manuel Cândido (“Garoto Esperto” era o que dizia o vigário, decrépito em sua preta batina surrada pelos pecados, alguns escabrosos, perdoados aos amados fiéis, ao ver no bolso de nossas brancas camisas da farda, à altura do peito esquerdo, o GE em formato de losango, bordado em azul, a mesma cor da calça); o triênio desastroso e difuso em face da perda de rumo pela orfandade precoce (desígnios de Deus); o salvador retorno à normalidade no Ginásio Salesiano Domingos Sávio, sob a guia de um anjo-mulher descido do céu, em meio às tormentosas experiências de uma nau à deriva em mares procelosos.

A par disso, moldaram também o meu ser os banhos de rio no sítio dos padres salesianos (de onde roubávamos cana para rasgar com os dentes as duras cascas e sorver o delicioso suco sentados na areia fria das margens do curso d’água, logo após os disputados rachas com bola Pelé e traves de gravetos), no do seu Porfírio (com a autorização tácita de seu filho Inácio que, às vezes, soltava os cachorros, em advertência por alguma molecagem nossa), no do seu Vicente Pinto (onde apreciávamos saborosíssimas mangas itamaracás, preguiçosamente deitados no leito do rio, as águas, em tranquila correnteza, lavando os nossos corpos e almas, logo após os disputados rachas no Beira Riacho, campinho de chão batido entre as estradas de ferro e carroçável que cruzavam um teimoso riachinho, a caminho do Coió), ou no do seu Paulino, o alvinegro Boque, (onde costumávamos encantoar, em meio às palhas secas da touceira, cachos de banana “de vez”, para a “merenda” na visita seguinte, em pescaria de anzol com isca de nacos de minhoca).

Prazerosos eram os espetaculosos – e de altíssimos riscos – saltos da mureta (guarda-corpo) da ponte em épocas de enchentes do voluntarioso rio Putiú, onde a minha assustada alma quase se despregou do meu magricelo e irrequieto corpo, mas que, por milagre, abandonou “in extremis” tal projeto de incontornável letalidade.

Aprendi, aos pés da serra, a gostar de frutas e verduras. As bananas, eu as saboreio a qualquer hora do dia ou da noite. Diante de mangas tiradas do pé, cometo uma das mais extravagantes variações do pecado da gula, cujo castigo imediato se manifesta tanto pelos fiapos presos entre os dentes quanto com o cheiro adocicado se impregnando nas mãos, nos dedos, nas bordas das unhas, debalde o asseio com água e sabão. E as tangerinas, com seu sabor travoso e seu cheiro denunciador… as tangerinas! Do caju, nem a castanha escapa, bastando apenas que lhe seja dado o tratamento tradicional: assadas e quebradas as suas oleosas cascas, os miolos amendoados se nos oferecem saborosos. Quanto ao abacaxi, ora dele tenho-me esquivado, ante a recomendação médica de evitar as danosas consequências do seu consumo em exagero. O tomate, o pimentão e a cebola, em rodelas, certamente compõem o mais perfeito acompanhamento de um saboroso tira gosto. E por aí vai.

Ah! Experimento agora um salto ornamental da memória. Retorno à minha primeira infância, nos tempos em que morávamos no Posto Agropecuário de Baturité, na então localidade do Coió, quando meus dois irmãos mais velhos estudavam no Grupo Escolar Monsenhor Manuel Cândido, cujo percurso, que atravessava toda a cidade – no sentido sertão-serra, se ida; e ao contrário, se volta –, cobriam a pé.

Dois pueris hábitos meus – acompanhar a minha mãe em suas poucas andanças e reservar, no almoço, o melhor pedaço de carne para “enfeitar” o prato de caldo de feijão na sobremesa – me levaram a uma situação insólita, invulgar.

Convidada para uma reunião de pais e professoras, ela me deixou na casa do irmão rico de meu pai, o tio Tonho, cuja cunhada solteirona era a minha madrinha de batismo, além da responsável pela inserção do Luciano em meu nome, originalmente programado para ser simplesmente Francisco, em homenagem ao meu avô materno (“Vão chamar o menino de Chico…”; hoje me sinto tão bem como Xykolu…).

O evento desbordou do tempo previsto, e minha mãe muito se atrasou no retorno. O almoço – cozido de carne de boi, com pirão de farinha, arroz e feijão – foi servido, reservado para mim o lugar ao lado de minha zelosa madrinha. Não me intimidei. Até me senti confortável. Postei-me como se em casa estivesse. Um pouco de dificuldade com o talher que, descoberta, substituíram-no pela colher. Tive um desempenho exemplar. E o hábito, o velho hábito me traiu. Com o mais vistoso pedaço de carne solitário no prato, eu pedi:

– Eu quero caldo de feijão.

A zelosa madrinha se dispôs a servir-me. Pegou o meu prato e fez cara de espanto ao deparar com o que, a seu ver, eu dispensara. Até hoje ainda consigo recuperar a reação da bondosa solteirona. Falou com estranhamento:

– Interessante. Ele não gosta de carne…

Caminhou, então, até um canto de parede na cozinha, curvou-se, despejou no chão o que se continha no meu prato e chamou alguém:

– Chaninho! Chaninho!

Um gordo e negro gato, de rabo esticado para o alto, quase formando um ponto de interrogação, aproximou-se preguiçosamente e… era uma vez um saboroso pedaço de carne de boi cozida.

O caldo de feijão, dessa vez desprovido de acompanhamento, estava delicioso.

De imediato, larguei o hábito. Restou em mim a convicção de haver contribuído, com caso concreto, para a validação do adágio popular “Quem guarda com fome, vem o gato e come”.

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