Que país é este? por Luciano Moreira

“Nunca na história desse país…”

Quem sobreviveu – incólume ou com algum trauma – ao collorismo, uma das páginas infelizes da nossa história, época do pedante quase-déspota alagoano, que se pavoneava por ter “aquilo roxo” e que se mostrava apreensivo por ter uma única bala para destroçar o dragão da inflação, mas que se desbotou solenemente por praticar gestão fraudulenta, e cuja coragem, manifesta já nos primeiros dias de seu desventurado governo, mostrou-se suficiente a invadir os indevassáveis, até então, patrimônios pessoais de cidadãos que perceberam, de repente, quão profunda era a insegurança econômico-financeira reinante no tão amado berço esplêndido (Temos de amar muito! E sempre!), deve lembrar-se de um “menino maluquinho” – peço mil desculpas a Ziraldo pela alusão inconsequente e absurda que ora faço à sua genial cria – que, saído de um sindicato paulista, desses que infestam o mercado de trabalho brasileiro, com propósitos no mais das vezes bem enviesados, celebrizou-se como componente da equipe ministerial do bravo e destemido “caçador de marajás” e notabilizou-se ao entrar para a memória do seu povo como criador de um neologismo que marcou época: imexível. Ele se chamava Magri e, com essa novidade, pretendeu qualificar o salário nosso de cada mês, que sempre correu sérios e graves riscos. (Ah, se merecesse a proteção secular das grandes fortunas! Alhures e algures!). Falante, com um jeito bem peculiar de dar tratos ao vernáculo, recentemente, já septuagenário, resgatou um pouco de sucesso midiático, embora tardio, autorrotulando-se imorrível.

“Nunca na história desse país…”

Pois bem. O imexível do Magri ganhou tanta popularidade que se aproximou do a nível de, expressão recorrente no discurso em economês da estrela de maior brilho da equipe collorida, a arrogante Zélia (meu reconhecimento póstumo ao gênio do humor, Chico Anísio, por ter feito com ela – por amor, eu sei! – o que, reconheçamos, eu e você e você e você chegamos a pensar em fazê-lo, se isso tivesse sido possível, sem qualquer vestígio de amor ou de querer bem, mas com recheios adocicados de uma boa vingança, reação, nada recomendável, de quem se sentiu vilipendiado pela desastrosa e desmedida ingerência de seu modelo econômico em dois dos mais sensíveis elementos constitutivos de uma boa cidadania: o bolso e a conta corrente), convindo lembrar que, no meu específico caso, embora tenha tido os meus suados e honestos cruzadinhos impiedosamente retidos e, por isso, sido obrigado a adotar um gerenciamento bem mais rigoroso de um já enxuto orçamento doméstico, compus, na condição de agente público federal, um dos grupos de atendimento oficiais incumbidos de esclarecer cidadãos, incrédulos, estupefatos e irritadiços, quanto as regras de exceção então postas em prática, sem afastar, muito frequentemente, a defesa – pasmem! – das medidas governamentais, em face das críticas de toda ordem que pessoas prejudicadas com o golpe (Epa! Esse era!) faziam, talvez com a vã expectativa de que tal comportamento pudesse mudar o curso das coisas.

Nada é mais obscuro, e por isso assustador, que o sentimento de poder de quem detém o poder!

“Nunca na história desse país…”

Em Magri, o verbete não-dicionarizado mereceu até críticas veementes e ruidosas. Inaceitável! Inadmissível! Imperdoável! Eis alguns dos bordões que o brado de defensores da língua mátria repetia, recoberto de ironia e até jactância, pretendendo ser ouvidos. Aqui, pelo menos dois aspectos reclamam algum tipo de análise. Sob o crivo da Sociolinguística (a língua em uso), percebo a ocorrência de fenômeno passível de aprofundamento crítico, a mim me parecendo recorrente em pessoas que, oriundas de classes sociais mais próximas da base, ascendem, por algum mérito e não mais que de repente, a postos elevados no cenário social ou político, assumindo, por contaminação, um compromisso pessoal e subjacente de comportar-se como se à classe superior sempre tenham pertencido. Quem assim age corre o risco, obviamente, de ser um elefante em loja de objetos de porcelana. Exceções há, sim; mas não passam de exceções. Agora, sob o manto da morfologia (a formação e a classificação das palavras), o neologismo se mostra adequado ao padrão da língua. Trata-se, pois, de um adjetivo, cuja origem é o verbo MEXER, submetido a processos de formação de palavras denominados SUFIXAÇÃO (num primeiro momento > -vel) e PREFIXAÇÃO (na sequência > in-), ou seja:

mexer-vel > mexe-vel > mexivel > mexível > in-mexível > imexível.

É o mesmo que ocorre com inúmeros outros adjetivos, inclusive os aqui citados:

aceitar-vel > aceita-vel > aceitável > in-aceitável > inaceitável;

admitir-vel > admiti-vel > admissi-vel > admissível > in-admissível > inadmissível;

perdoar-vel > perdoa-vel > perdoável > in-perdoável > imperdoável.

Portanto, o não-registro em dicionário (neologismo) e o ineditismo no uso do vocábulo é que, na verdade, causaram toda a estranheza.

A língua é dinâmica e ao usuário cabe sempre enriquecê-la, desde que em observância a seus paradigmas (modelos, matrizes) formais.

“Nunca na história desse país…”

Já em Zélia, a crítica recorrente à expressão a nível de é plenamente justificável. Embora encontremos em alguns dicionários o significado “estado de um plano horizontal” para o verbete “nível”, valho-me de duas acepções inscritas em Aurélio* – 2. Superfície paralela ao plano do horizonte. 3. Elevação relativa de uma linha ou de um plano horizontal – para evidenciar que o vocábulo sugere, no mínimo, o estabelecimento de uma relação necessária com algum ponto de referência, fenômeno que o vincula, irremediavelmente, ao sentido de altura ou de profundidade e, por extensão, de verticalidade. [Exemplo: Em que nível estão as águas do reservatório? No nível de dois metros e meio. Ou seja, do plano da superfície – lâmina d’água – ao fundo do reservatório]. Ora, o núcleo da locução adverbial (em/no nível de) é “nível”, o que valida o seu uso em situações em que lhe caiba modificar um verbo, um adjetivo ou outro advérbio, exprimindo uma circunstância de altura, profundidade, verticalidade. Ora, no discurso da então primeira-ministra, os enunciados em que ela usava a locução agramatical (a nível de) carregavam, todos eles, o sentido de campo de atuação ou de ingerência, de área circunscrita a determinados efeitos, de ambiência de ações, ou seja, de horizontalidade abrangente (no âmbito de). Claro está que – embora admitindo que, entre os emaranhados das fórmulas econométricas, alguma conclusão possa desmentir-me – o vertical sempre estará numa posição perpendicular ao horizontal, ou seja, jamais haverá entre eles qualquer tipo de igualdade. Pra mim, até que se prove o contrário, trata-se de uma regra imexível.

“Nunca na história desse país…”

Esse segmento de frase, com que propositalmente intercalei blocos deste – e não desse – meu texto, quem a cunhou – sem a mais mínima referência ao cambaleante e renitente ex-chefe da Casa do Povo, afastado por decisão da Suprema Corte, ameaçado de cassação do mandato pelos seus ímpares, renunciante (Até que enfim! Ufa!) ao posto de comando e ora sob sério risco de defenestração – foi o autointitulado “homem mais honesto” destas paragens, terra abençoada por Deus e chamada Brasil. O nunca, usado como indicativo de totalidade da negação, afastada, assim, qualquer outra possibilidade, é bem próprio de quem assume o caráter divinal de onipotente salvador, de onisciente líder supremo de todos os indivíduos, circunstancialmente compatriotas seus, valores esses que acabam desbordando para a prepotência, para a arrogância e até para as bravatas. Já o desse (contração da preposição “de” com o pronome demonstrativo “esse”), contém dois aspectos sobre os quais ora me debruço. Considerado o fonético (sons da fala como entidades físico-articulatórias isoladas > os fones) e fonológico (sons da fala como entidades funcionais, com valor distintivo, ou seja, que distinguem significados > os fonemas), o este compõe-se de quatro fones/fonemas (com um [t] oclusivo palatalizado /t/ ou africado /tʃ/ – pronuncie “tch” –, conforme a ambiência linguística), enquanto o esse de apenas três (dígrafo “ss” = fonema [s] e fone /s/ fricativo), com menor grau de dificuldade de articulação e, por isso, preferido, mesmo inconscientemente, pela grande maioria dos usuários da língua. Agora, para o morfossintático (formação e relação) e semântico (sentido, significação), os pronomes demonstrativos este, esse e aquele e suas flexões explicitam, por conceito, a posição, em termos de espaço, tempo ou discurso, de uma certa palavra em relação (elo coesivo) a outra(s) ou ao contexto, cabendo ser observada sempre a noção de proximidade (este) e de distância (esse > menor; aquele > maior).

Conclusão: para o autor da frase, usuário contumaz da língua informal em qualquer contexto, pouco importa o real significado do demonstrativo; vale-se ele, então – sem o saber, diga-se, por necessário –, da articulação menos complexa, do uso mais popular e de maior frequência: em vez de deste, emprega o desse. A menos que sua pretensão elocutiva seja mesmo referir-se a um outro país, fisicamente não muito distante do que considera exclusivamente seu – o que é, no mínimo, pouco plausível –, verifica-se, a rigor, uma imperfeição semântica.

A sorte deste país, o Brasil, é a sua capacidade de ajustar-se às mais variadas e incríveis situações.

E este é o meu país.

* Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em Novo Dicionário da Língua Portuguesa (Editora Nova Fronteira).

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.