QUE NOVA ORDEM SOCIAL BROTARÁ DESSA DEPRESSÃO? – SEGUNDA PARTE

Como vimos na primeira parte deste artigo, as condições geopolíticas para a construção dos estados de bem-estar social (welfare state) nas nações do capitalismo central consolidaram-se com a Conferência de Bretton Woods, em 1944. As vantagens econômicas dos Estados Unidos eram indiscutíveis e esmagadoras. Tinham a maioria dos investimentos mundiais, da produção manufaturada e das exportações. Em 1945, com uma Europa destroçada pela Guerra, os EUA produziam a metade de todo o carvão mundial, dois terços do petróleo e mais do que a metade da eletricidade. Além disso, eram capazes de fabricar imensas quantidades de navios, aviões, automóveis, armamentos, produtos químicos e máquinas, detinham 80% das reservas de ouro, além de possuir uma poderosa Força Armada com artefatos bélicos atômicos e a moeda internacional. Em resumo, tinham uma ordem mundial ao seu dispor.

Mas o capitalismo dos EUA não poderia sobreviver sem mercados e sem aliados, uma vez que o bloco socialista, liderado pela URSS, havia saído também vitorioso da hecatombe.  Na condição de maior potência mundial, os EUA estavam em posição de ganhar mais do que qualquer outro país com a liberação do comércio, teriam com isso um mercado para suas exportações e acesso irrestrito a matérias-primas vitais. Assim usaram sua posição hegemônica para restaurar uma economia mundial aberta, unificada sob seu controle, dando-lhe acesso ilimitado a mercados e matéria-prima.

Não obstante a hegemonia estadunidense, importante notificar que a construção dos estados de bem-estar social não segue um padrão único. Pelo menos três modalidades podem ser tipificadas, segundo sua forma de financiamento, pela extensão de seus serviços, pelo peso do setor publico na definição das políticas sociais, pelo seu grau de sensibilidade aos sistemas políticos e pela sua organização institucional.

O modelo da Europa continental caracteriza-se em sua gênese como complementar a ações do mercado. Ora o peso dos sindicatos atua na distribuição dos benefícios, enfatizando assim a dimensão corporativa, ora o peso maior da distribuição se desloca para o sistema partidário com o ciclo político, dando relevo a um modelo mais clientelístico.

No modelo estadunidense a política social intervém “ex-post” e de forma temporária, onde predomina a assistência aos comprovadamente pobres, com reduzidas transferências universais ou planos modestos de previdência social nos quais as regras para habilitação aos benefícios são estritas e muitas vezes associada ao estigma.

Por sua vez, o modelo nórdico europeu está voltado para a produção e distribuição de bens e serviços sociais extra-mercado, os quais são garantidos a todos os cidadãos universalmente cobertos e protegidos. É um welfare state socialdemocrata em que o universalismo atinge amplamente a classe média e onde todos os segmentos sociais estão incorporados a um sistema universal de seguros no qual todos são simultaneamente beneficiários, dependentes e, em princípio, pagadores.

A Experiência Brasileira em Gestação

Adotaremos como marco para nossa breve reflexão a ordem democrática instituída no Brasil com a Constituição de 1988 que vinculou legalmente o gasto social como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), mais especialmente no capítulo que trata da seguridade social contemplando saúde, previdência e assistência social. Somente a partir dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados (2003-2014) que a noção de welfare state será dinamizada por meio de uma visão estratégica cuja economia social é pensada como instrumento estruturante da política desenvolvimentista nacional.

O governo Lula em sua dimensão política prática foi crítico à perspectiva do desenvolvimento “livre e espontâneo” imaginado pelos governos neoliberais de Collor (1990-1992) e Cardoso (1995-2002), para os quais bastariam a estabilidade monetária como um fim em si mesma, o câmbio flutuante, o regime de metas inflacionárias e os superátivs primários que naturalmente ocorreriam os avanços sociais no Brasil.

Collor e Cardoso são herdeiros do pensamento econômico militar (Roberto Campos) cuja meta foi concentrar riqueza, fazendo o bolo crescer, para somente num futuro distante, possivelmente, reparti-lo. O resultado desta política neoliberal da década de 1990 foi a subida do Brasil no ranking global de 13º lugar para 3º lugar em número de desempregados, aliado a um dos maiores processos de concentração de renda e transferência do patrimônio público para setores privados, atingindo o fundo do poço de nossas reservas internacionais em dezembro de 2002 (US$ 36 bilhões, depois de um empréstimo emergencial do FMI) com um PIB de US$508 bilhões.

No governo Lula (2003-2010), 23% do PIB, o dobro do que no governo FHC, foram investidos na política social. E se for contabilizado o efeito multiplicador deste investimento, pode-se estimar que quase a metade da produção da riqueza nacional relacionava-se direta ou indiretamente à dinâmica da economia social. A cada R$4,00 gastos no Brasil do período Lula, um real estava vinculado à economia social. Resultado: queda na desigualdade de renda do trabalho e nas taxas de pobreza absoluta e extrema. Os segmentos de menor rendimento foram os mais beneficiados. Em 2008 os 10% mais pobres (base da pirâmide) tinham 25% dos seus rendimentos oriundos de transferências monetárias, enquanto que em 1978 (governo militar de Ernesto Geisel) esta razão era de somente 7%. Lula elevou em 3,6 vezes o valor. Adicionalmente observa-se que em 1978 somente 8,3% dos domicílios cujo rendimento per capita situava-se no menor decil da distribuição de renda recebiam transferências monetárias, enquanto no grupo dos 10% mais ricos as transferências monetárias alcançavam 24,4% dos domicílios. Trinta anos depois constatava-se que 58,3% das famílias na base da pirâmide social receberam transferências monetárias: um aumento de 07 vezes para famílias de baixa renda. Com a complementação de renda pelas transferências, o Brasil registrou 21,8 milhões de pessoas ultrapassando a linha de pobreza extrema. Em 1978, o efeito da política de transferência monetária impactava somente 4,9 milhões de pessoas.

Portanto, o governo Lula mostrou ser essencial para o Brasil reorientar o papel do Estado como indutor da economia, como prevê o pensamento keynesiano, para continuar a luta pela superação do subdesenvolvimento, cujos resultados positivos apareceram rapidamente com crescimento econômico duas vezes maior que na década de 1990, combinado com redistribuição de renda, sobretudo na base pirâmide social, e elevação da participação do trabalho na renda nacional (44% em 2010). Para isso, foi necessário recompor as empresas e bancos estatais, ampliar o universo de funcionários públicos por substituição dos terceirizados na execução das políticas de Estado e inovar as ações públicas, como nos casos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para infraestrutura, do Programa Nacional de Habitação Popular (Minha Casa, Minha Vida), da exploração do petróleo no pré-sal, do alargamento da saúde, da educação, eletrificação, entre tantos outros exemplos. O Brasil emergiu com vontade própria e a capacidade de se reorganizar em torno de um novo projeto de desenvolvimento nacional liderado por importante convergência política conduzida pelo Partido dos Trabalhadores. Ao final do governo Lula o Brasil dispunha de *uma reserva internacional no valor de US$ 300 bilhões*, *um PIB na casa de US$ 2,3 trilhões* e deixando de ser devedor para ser *credor do Fundo Monetário Internacional (FMI)*.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .