Há exatos 53 anos, 26 de junho de 1968, acontecia no Rio a passeata dos 100 mil. Em homenagem a esses valentes defensores da democracia, publico neste espaço capítulos de Quase Romance, recém publicado pela editora Sarau das Letras.
Capítulo 42
A política, o amor
26 de junho de 1968. Há pouco menos de três meses, ocorreu o assassinato de Edson Luís, a 28 de março. Para hoje organizou-se o que se pretende a maior mobilização dos estudantes contra o regime militar. Ana, mal amanhece o dia, dedica-se a confeccionar faixas e cartazes com letreiros em que manifesta toda a sua (a nossa!) indignação, a maioria deles em torno do que nas ruas ouve-se como um grito de guerra incansável: “Abaixo a ditadura!”, “Queremos liberdade!”, “Chega de repressão!”, “Edson Luís vive!” etc. Pintora de talento, com o desvelo dos apaixonados, escolhe tintas, cores, texturas, com um carinho que extrapola a razão de ser do suporte, o que resulta em faixas e cartazes em que se faz perceber a mão segura e hábil com os pincéis. Mas, acima de tudo, o amor pela causa.
Às dez horas, pouco mais ou menos, descemos para a avenida por onde transitam os primeiros estudantes, artistas, intelectuais, professores. Portam bandeiras, pequenos painéis, banners, e a maioria veste camisetas pretas ou vermelhas; muitos, pretas e vermelhas, lembrando a torcida do Flamengo em dia de maracanã. Há, em tudo, uma atmosfera tensa e nervosa. Aqui e além, percebem-se policiais ostensivamente armados. Muitos, a cavalo. Decidimos ir de ônibus, confiantes de que o evento haverá de entrar para a história pelo número de participantes. Otimista, excitada desde as primeiras horas da manhã, Ana fala em cinquenta mil pessoas. Contenho-me, mas a vejo demasiado empolgada. Prevendo a dimensão do ato, o governador Negrão de Lima emitiu nota de permissão para que os estudantes realizassem o evento na Avenida Rio Branco, de resto o palco das grandes manifestações contra o governo, mas “o clima de repressão e a violência dos atos anteriores manterá em casa contingentes expressivos dos que se opõem à ditadura militar”, digo-lhe, ao que responde que não, que “o movimento está tomando corpo, crescendo em ritmo alucinante, e numa proporção que não se poderá mais controlar!”
Na Cinelândia, pelo asfalto, interditado para o tráfego de carros e ônibus, veem-se numerosos grupos caminhando na direção da Igreja da Candelária. Passa das 11 horas quando atingimos o local estabelecido para os pronunciamentos, no coração da avenida. Ao deparar com a multidão compacta, começo a achar que Ana está com a razão e não é descabido falar em números grandiosos, de cinquenta, sessenta, talvez setenta ou oitenta mil participantes. Ana abre-se em risos que têm o tamanho de sua dignidade como mulher e como militante, diante da qual, tomado de medo e espanto, apequeno-me cada vez mais, enquanto dói no mais fundo de mim a consciência de que ali, portando um imenso cartaz que a faz abrir os braços como uma guerreira no campo de luta, já não está a minha mulher, mas um ser livre e belo decidido a reconstruir sua história, refazer sua vida, conquistar o mundo em que escolheu viver — e que não é, faz-se nítido para mim, o mesmo em que eu, presa dos seus indomáveis encantos.
Capítulo 43
A Passeata
Ana e Paulo, a que se somavam alguns amigos, caminhavam ombreados. Tentavam, a custo, chegar à cabeça da passeata, onde se viam militantes famosos, muitos, mesmo aqueles mais populares, cuja presença, em meio à multidão de anônimos, não seria sequer pensável em circunstâncias normais. A aproximá-los, a fazê-los assim tão próximos, íntimos, iguais, havia o mesmo sonho, o sonho de um país mais livre, mais justo, mais humano. Via-se ali, os braços entrelaçados, gente admirada, verdadeiras referências intelectuais e artísticas: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Leila Diniz, Ziraldo, Zuenir Ventura, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Clarice Lispector, Paulo Autran, Grande Otelo, Nana Caymmi, Luís Carlos Barreto, Norma Bengell, Odette Lara, Marieta Severo, Eva Todor, Milton Nascimento, Nelson Mota, Cacá Diegues, Leonardo Villar e Paschoal Carlos Magno, a fina flor da literatura, da música popular brasileira, do cinema. A poucos passos, liderando esses idealistas, alimentando suas utopias e sua confiança no porvir, administrando com sabedoria seu ânimo e sua coragem, não raro inconsequente, um jovem de cabelos esvoaçantes, vestindo um terno azul-marinho, fazia-se notar pelo entusiasmo e pelas palavras a um tempo sensatas e destemidas: Vladimir Palmeira era o seu nome.
Mal contendo a euforia, quase gritando para se fazer ouvir, Ana quer saber:
— Paulo, quem é aquele moço alto, perto do Vladimir?
— Franklin Martins! Franklin Martins!
— Não, não! O outro, bonitão …
— José Dirceu!
— Não, Paulo, aquele ali, ó… que olhou pra cima, agora, viu? De cabelos louros…
— Ah, aquele é o Sirkis! Alfredo Sirkis!
Do alto dos edifícios, uma chuva de papel picado cobre de colorido a multidão. Agora, não são mais cinquenta, nem sessenta, nem setenta, oitenta mil. Algo em torno de cem mil brasileiros de todas as idades, de todas as raças, de todos os credos, de todas as posições sociais, caminham, serenamente, pela Avenida Rio Branco, centro nervoso da cidade. Fazem-no em nome da liberdade, “Pela reabertura do Calabouço”, por “Liberdade para os presos”, “Por mais verbas e menos canhões”, “Pela volta da Democracia”, pelo “Fim do imperialismo”.
Foto by: David Drew Zingg – Acervo