HIPOCRISIA É UM EXERCÍCIO DE DOMINAÇÃO. Hipócrita é um termo abundantemente encontrado em textos de livros sagrados cristãos – evangelhos, cartas e atos dos apóstolos – para designar pessoas e circunstâncias impeditivas da manifestação da verdade, que como “acontecimento” (Alain Badiou) é sempre universal. Ou seja, hipócritas utilizam-se da hipocrisia (do fingimento, do cinismo, da simulação) para exercer sua dominação sobre os outros por meio da manipulação dos fatos e dos discursos. Para tanto o hipócrita finge ser o que não é para apresentar-se publicamente como alguém diferente de si mesmo.
Hipocrisia tem origem em dois vocábulos gregos: “hypos” significa debaixo; “krinein”, quer dizer separar gradualmente. Era empregada originalmente em relação ao desempenho dos atores no teatro grego que em suas encenações expressavam emoções não reais, ou seja, relativas aos personagens que representavam no palco. O teatro grego caracterizava-se, entre outras coisas, por ser um teatro de máscaras.
Em uma passagem atribuída a Jesus de Nazaré (Mt 23), ele opera uma descrição muito completa das artimanhas dos hipócritas que procuram utilizar-se de todas as formas de comunicação social para serem bem vistos publicamente: frequentam o templo, ocupam os melhores lugares nos banquetes e nas sinagogas, passeiam nas praças públicas para serem saudados e serem chamados de rabis. Segundo Jesus, esses hipócritas impedem as pessoas de adentrarem o reino dos céus (conhecer a verdade), devoram no escondido da noite as casas das viúvas para depois fazerem horas de oração nas sinagogas à luz do dia, atam fardos pesados sobre as costas da população, limpam apenas a borda do copo, mas deixam seu interior sujo. São como sepulcros caiados, aparentemente bem vistos por fora, mas cheios de imundícies por dentro de si.
Um discurso que se pretenda verdadeiro – portanto, universal – não pode ser escondido por debaixo dos panos. O que se esconde é o particular, o criminoso, a falcatrua, a obscenidade. Por não ser verdadeiro, o fingimento do hipócrita não consegue se sustentar o tempo todo, inesperadamente suas contrições vêm à tona e os que estão à sua volta começam a perceber o enredo de falsidade por ele construído. Um dos mecanismos de defesa do hipócrita é a tentativa continuada de afastar de si o vício que carrega consigo. Por exemplo, um adúltero poderá ser um crítico ferrenho em relação aos comportamentos de adultério, porque é da condição do hipócrita condenar com veemência no outro aquilo que quer esconder e não quer admitir em si. Como também é alguém que alimenta a inveja, por não ter condições ou coragem de praticar uma virtude que ele vê sendo vivenciada por outra pessoa.
Ontem, dia 22, o Brasil teve a oportunidade de adentrar uma verdade por meio da divulgação pública de uma reunião de agentes republicanos, a saber, do presidente da República com seus ministros de Estado. Uma decisão sábia, justa, republicana e muito bem fundamentada do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), em função do inquérito 4.831, envolvendo a denúncia de Sérgio Moro sobre a disposição de Bolsonaro em querer interferir no comando da Polícia Federal (PF) para atender a seus interesses pessoais com intuito de “proteger familiares e amigos”, como ele bem disse textualmente num trecho do referido vídeo.
Em seu despacho Celso de Mello ressaltou os fundamentos que lhe dão suporte, entre os quais destaco: i) respeito ao direito dos cidadãos que, fundado no princípio da transparência, traduz consequência natural do dogma constitucional da publicidade que confere, em regra, a qualquer pessoa a prerrogativa de conhecimento e de acesso às informações, aos atos e aos procedimentos que envolvam matéria de interesse público; ii) reconhecimento de que não deve haver, nos modelos políticos que consagram a democracia, “espaço possível reservado ao mistério” (Norberto Bobbio), pois o vigente estatuto constitucional brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta – erigiu a publicidade dos atos, das informações e das atividades governamentais à condição de valor fundamental a ser fielmente observado; iii) a “disclosure” (divulgação) do conteúdo do que se passou na reunião ministerial de 22/04/2020 – além de revelar absoluta falta de “gravitas” de alguns de seus participantes, consideradas as expressões indecorosas, grosseiras e constrangedoras por eles pronunciadas – ensejou a descoberta fortuita ou casual de aparente crime contra a honra dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, supostamente perpetrado pelo Ministro da Educação (Abraham Weintraub) e que, por qualificar-se como prova inteiramente lícita, constituirá objeto de comunicação aos destinatários de tal possível delito.
Qual foi a centralidade daquela reunião ministerial com o presidente no dia 22 de abril?
Primeiramente, uma repreensão aberta de Bolsonaro frente ao seu corpo de ministros em relação à falta de conexão e de apoio diante das atitudes pessoais por ele tomadas de confronto aberto à política de combate à pandemia do corona vírus adotada por governadores e prefeitos em todo Brasil que seguem as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das experiências bem sucedidas da comunidade de nações afetadas pela pandemia. Afirmou dolosamente que iria continuar andando pelo país (ou seja, promovendo aglomerações).
Em segundo lugar, sua explícita preocupação reside “em proteger familiares e amigos”, isto está bem claro no vídeo. Proteger de que? Quem são esses amigos que ele quer proteger? Os seus familiares estão sendo ameaçados de que? Por quem? Cabem investigações dos órgãos competentes, para o pleno esclarecimento – colocar em luz – desta ocultação. Para que a verdade seja anunciada, abatendo a hipocrisia.
Bolsonaro reclamou irritado da ausência de informações que não lhe chegam dos organismos oficiais, incluída a PF (Polícia Federal). No vídeo ele fez outra revelação grave: que o sistema de informação particular dele funciona. Mas não disse quem faz parte desse sistema, como organiza-se e como opera, e nem como ele, Bolsonaro, executa o pagamento desse sistema pessoal de informação, uma vez que os dados do cartão corporativo tornaram-se sigilosos em seu governo.
Por fim, em tom de ameaça, disse que iria interferir em todos os ministérios. E no caso específico da informação, mudaria o chefe e se fosse o caso também o ministro. No dia 24, dois dias após, o Diretor Geral da PF, Maurício Valeixo, foi exonerado e Sérgio Moro pediu demissão do ministério da Justiça. No dia 04 de maio, a superintendência da PF no Rio foi mudada. Esses são os fatos.
Como discorreu seu discurso na reunião em defesa dessas suas pautas?
Por meio de palavrões. Dirigidos a personalidades republicanas, como também em suas análises das conjunturas por ele apresentadas. O que há dentro dele, do seu espírito (pensamento), de forma dominante, são palavrões. Como registrado acima sobre o agir da mentalidade hipócrita, Bolsonaro de forma recorrente e veemente atacou a suposta violência de seus adversários, propondo como solução prover a população com armamentos (milícias fazem parte da população?) para o inevitável confronto com a violência do comunismo iminente de acontecer no Brasil. Esqueceu (?) de dizer que durante 14 anos, de 2003 até 2016, a esquerda governou este país em clima de paz, por meio da inclusão – BRASIL PAÍS DE TODOS – do desenvolvimentismo e do respeito pela diversidade e dignidade humanas. O clima de confronto e cisão interna foi construído pela mídia hegemônica em 2013 para a realização do Golpe em 2016. Em 2018 Bolsonaro radicalizou a conflagração social e política em sua campanha, continuando de forma intensa agora durante o seu mandato, como bem expressaram os seus ministros fundamentalistas Damares Alves, dizendo que vai encaminhar o pedido de prisão de governadores, e Abraham Weintraub: “por mim, botava esses vagabundos na cadeia, começando no STF”. Como disse uma autoridade em relação ao vídeo, “o encontro oficial de Bolsonaro com seus ministros pareceu uma reunião de malandros”. Ou pior.
Mas algumas perguntas não calam: Moro não sabia da hipocrisia de Bolsonaro? Afinal esta não foi a primeira reunião do governo. Seus apoiadores, a começar pelos meios de comunicação, não sabiam quem era Bolsonaro durante os 30 anos de mandato parlamentar, e principalmente pelo formato de sua campanha presidencial? As Forças Armadas, que na pessoa do ex-ministro Leônidas Pires, durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), recomendaram a expulsão de Bolsonaro do exército, desconheciam as características do caráter fascista de Bolsonaro?
E a pastora Damares, escutando aquela saraivada de palavrões do seu Mito – cristão e defensor da família – não tinha sequer uma goiabeira para se pendurar nela e conversar com Jesus. Coitada!