Quando o futebol nos une

“Ultimamente em toda entrevista que dou, uma pergunta é certa por que você se posiciona? Mas talvez o melhor fosse “por quem você se posiciona?” É muito importante que isso fique claro. As pessoas de onde eu venho não têm voz e nem vez…  
… O futebol me salvou! É por isso que eu falo, me posiciono e mostro minha indignação pelo mínimo de dignidade e igualdade para todos os brasileiros que não tiveram a mesma sorte que eu.”

Richarlisson.

Nas nossas preferências clubísticas Brasil afora costumamos ter disputas acirradas; nem sempre elas ocorrem dentro do espírito de gozação saudável dos que ganham para com os que perdem, e assim por vezes ocorrem atos de violências que mais parecem catarses criminosas decorrentes de opressões sociais reprimidas e mal encaminhadas nas suas soluções.  

Na copa do mundo tudo é diferente.  

Nela aparecem os sinais de uma brasilidade unificada que se corporifica num esporte facultado aos pobres, vez que basta uma bola remandada com quatro tijolos servindo de traves num terreno baldio para a sua prática.

Para os meninos brasileiros sem alimentação substanciosa; sem escola pública de qualidade (a educação como mercadoria é a mais acintosa demonstração de como o Estado existe para oprimir e servir ao capitalismo prioritariamente); sem saúde; e sem segurança, o futebol é o ponto de unidade na diversão facilmente facultada.  

A brasilidade do futebol não significa um nacionalismo xenófobo, patriótico, mas uma identidade cultural saudável, e nesse esporte podemos ser considerados como participantes das sete seleções mais respeitadas do mundo.  

Brasil, Alemanha, Itália, França, Espanha, Argentina e Uruguai estão no G7 do esporte mais amado do mundo: o futebol. Com alguma condescendência poderíamos incluir a Inglaterra, inventora do esporte bretão.
Qualquer criança habitante dos cinco continentes sabe quem é Leonel Messi, kylian Mbappe, Neymar Junior (e agora começam a conhecer o bom Richarlisson como excepcional jogador e ser humano decente), Thomas Müller, Luiz Soares, e seus pais sabem que foi Pelé, Maradona e Beckenbauer.  

O Brasil é bom em duas das mais expressivas manifestações populares de encantamentos: o futebol e a música.  
Nossos meninos pobres, nascidos em sua quase totalidade nas favelas e bairros pobres da periferia das nossas cidades cindidas em classes sociais absurdamente discrepantes por um abismo social vergonhoso, têm no futebol uma chance de salvação.  

A exportação de jogadores ainda imberbes tem sido artigo de precioso valor econômico para nossos clubes falidos e de salvação individual de muitos da miséria reinante.  

Alguns que se tornam famosos e ricos na Europa, incorporam os gozos e conceitos de vida da alta burguesia e se esquecem de onde vieram; outros, como o nosso Richarlisson, mantêm os pés no chão e a cabeça boa exercendo uma contributiva participação social crítica, o que só enaltece as suas competências.  

Ter excelência no futebol e na música (os nossos músicos instrumentistas, compositores e cantores figuram entre os melhores do mundo, e com músicas mais tocadas mundo afora) é o que nos representa fidedignamente, e não aqueles que têm dinheiro para ir ao Catar e aproveitar a oportunidade para intimidar adversários políticos, como aquele que agrediu Gilberto Gil e sua mulher.  
Ao contrário, quando se fala em política, a nossa tradição militarista de tutela governamental, que vai desde a instituição da primeira república por militares; golpe militar de 1930, com Getúlio Vargas posteriormente deposto em 1945 e substituído por uma eleição militar que colocou no poder o General Eurico Gaspar Dutra que governou até 1950; e novo golpe militar em 1964 que durou até 1985, não nos credencia como país que zela pelas liberdades democráticas.  

A nossa elite política sempre foi aliada das tutelas militares e dos donos do PIB brasileiro, e até agora, após um período pouco usual de eleições diretas (de 1989 a 2022, são apenas 33 anos permeados por dois impeachments), há quem vaie a seleção brasileira por tirar o foco das manifestações golpistas que se constituem no clamor de uma minoria que quer valer mais do que a maioria.  

Os golpistas apropriaram-se indebitamente da cor verde-amarela e bandeira, nossos símbolos históricos, como se fossem unilateralmente deles. Mas a seleção brasileira, com sua cor amarelinha predominante, roubou a cena, e coube justamente a um jogador identificado com o que há de melhor no Brasil, a miscigenação racial que nos faz fortes, promissores e esperançosos, unificar os brasileiros mais conscientes com os adversários menos raivosos e recalcitrantes abertos a todos os pensamentos e preferências.  

Como é bom ver um eleitor do Boçalnaro, o ignaro, perto de Já/ir embora, se abraçar com seu adversário eleitoral e gritar em uníssono: Brasil, Brasil, Brasil com um gol de quem deu um voleio artístico para afastar a fome e a insensatez.  

Este, sim, é um grito de unidade nacional sem xenofobia, mas carregado de regionalidade cultural e fraterno respeito para com os Sérvios derrotados em campo.  
Não há espaço para o ódio na copa, mas a apenas a expressão de contestação de tudo que é retrocesso civilizatório tão experimentado neste nosso país rico em riqueza material (água abundante, muitas terras férteis, minérios e gente boa) e pobre em riqueza abstrata (dinheiro e mercadorias).  

Como é bom ver na copa do mundo de futebol as mulheres da Arábia Saudita chorarem de alegria e orgulho por poderem estar num estádio de futebol, mesmo se arriscando a retaliações quando retornarem ao seu país;  
– como é bom ver em pleno Catar a bandeira de Pernambuco, que contém as cores do arco-íris, ser empunhada por alguém que defende a liberdade de gênero, num país que a segrega;
– como é bom ver os jogadores se ajoelharem numa só perna numa saudação que se tornou o símbolo da luta contra o racismo, e numa transmissão de televisão ao vivo para bilhões de pessoas mundo afora.

A copa do mundo de futebol é isto: oportunidade de confraternização e brado civilizatório de unidade mundial, e nesse quesito o Brasil, junto com a Alemanha, são os únicos países do mundo que daqui há poucos dias podem se tornar hexacampeões mundiais.  
Oxalá possamos conquistar o fetiche maior do futebol: a taça de campeão do mundo, e termos um herói improvável, o menino pobre que traz em seu corpo os sinais de uma miscigenação racial brasileira maravilhosa e é detentor de uma cabeça (interna para o bem, e externa para o cabeceio) surpreendentemente boa e consciente do seu papel de origem de classe: o Richarlisson.  

Dalton Rosado.  

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

Mais do autor

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;