Quando o certo escandaliza, por Rui Martinho

O senador Renan Calheiros errou ao deixar de receber o oficial de justiça, embora tenha tido a prudência de não presidir nenhuma sessão do Senado até o STF dirimir a pendenga. Marco Aurélio encaminhou à PGR notificação sobre isso, que deverá ter consequências. Agiu certo e não é possível, de imediato, fazer mais do que isso. Mas errou em cascata.

Primeiro: decidiu um imbróglio que não era urgente valendo-se de liminar, medida que exige um perigo iminente capaz de ameaçar o direito em litígio. Não havia o perigo iminente de afastamento simultâneo dos presidentes da República e da Câmara, o periculo in mora do jargão forense. Não cabia liminar.

Já havia errado ao tomar decisão tão grave em juízo sumário (liminar), acumulando dois erros até aqui.

Terceiro erro: decidiu monocraticamente. Colegiados existem para decidir coletivamente.

A ação que examinava o impedimento do substituto eventual do presidente da República dispensava a oitiva da defesa, por ser um exame em tese da constitucionalidade da situação considerada de modo abstrato, em ação objetiva, sem partes, não discutia nenhuma pessoa em particular, mas genericamente a condição do exercício de um cargo. A liminar, porém, incidia sobre o senador Renan, assumindo caráter subjetivo (subjecto=pessoa). A parte prejudicada deveria ter o direito de defesa, prazo para o contraditório etc. Isso não foi feito: temos o quarto erro.

O ministro cometeu o quinto erro: usou o resultado inconcluso de um julgamento, sem valor como jurisprudência, como fundamento de uma liminar.

Sexto erro: usou a analogia com o caso Eduardo Cunha como outro fundamento da decisão que desencadeou a crise. O deputado não foi afastado por ser réu, mas porque estaria prejudicando o desenrolar de um processo em benefício próprio. Renan não foi acusado disso. Não cabia a analogia.

Sétimo erro: declarar, com base em uma interpretação extensiva que, se o titular do cargo de presidente não pode ser réu, o cargo do substituto também exige tal coisa. Isso não está escrito em lugar nenhum. É interpretação extensiva porque diz mais do que o texto legal. Não se pode usar este tipo de interpretação para restringir direito. A decisão polêmica cerceou o direito de um cidadão.

O STF pode condenar um senador. Mas a execução da pena exige uma licença do Senado. O ministro aplicou uma medida penal contra um senador sem pedir licença ao Senado. Feriu a separação dos poderes. Oitavo erro.

A prerrogativa de substituir o presidente da República é do cargo. Mas as prerrogativas de um cargo são indivisíveis? Só na interpretação extensiva. Os brasileiros aceitam uma decisão inepta, baseada em interpretação extensiva e analogia equivocada, tomada sem a oitiva da parte prejudicada, em juízo sumário, passando por cima da separação dos poderes? Queremos apenar o Presidente do Congresso com base na duvidosa interpretação da indivisibilidade das prerrogativas dos cargos?

O STF corrigiu, sem corporativismo, os erros aurelianos. Desta vez agiu certo. Não se trata de privilégio do senador. É a defesa do Legislativo e da segurança jurídica de todos. Uma decisão judicial atrabiliária agride a cidadania.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.