QUAIS SÃO OS GRITOS QUE NOS UNEM? por Rafael Silva

O grito é a expressão humana mais imponderável. Ele marca a saída de nossas angústias, comunica nossa intemperança e auxilia-nos frente ao impossível. É o limite entre o desespero e a esperança, é a fuga do vazio existencial para o encontro coletivo. O grito é o primeiro ato rumo à liberdade. Ao lado de quem grita se estabelece a expectativa do movimento, cria-se um caminho sem volta para o coletivo.

Estou convencido hoje que gritar é tão necessário quanto nos tempos que levaram Edvard Munch a pintar “O Grito”. A pergunta que se faz aqui é: quais são os gritos que nos unem?

Como já disse, ao se encontrar no limite entre o desespero e a esperança, só nos resta o grito. Não há registro na história moderna que se tenha havido uma única revolução que não tenha começado por um grito. A expressão mais emblemática vem do quadro do artista francês Delacroix – quando ainda no século 19 – soube pintar a liberdade francesa vindo da nudez cintilante da mulher ao empunhar a bandeira de outras possibilidades. É o grito a primeira opção da mãe ao ver seu filho em situação de perigo, do sacerdote diante do mal, do excluído diante da opressão. O tamanho e a força do grito são elementos de suma importância, mas é a sua legitimidade que vai estabelecer os limites da relação social. Quem negaria apoio a uma mãe aflita? Quem não impediria uma ação diante do mal,  quem se colocaria insensível a uma flagrante situação  opressora? Caso o grito não venha nessas circunstâncias pode significar algo bem pior: ausência da capacidade de indignar-se. E aí, como bem disse Vinícius de Morais “pior do que um infarto, você precisa de um psiquiatra.”

Na sociedade atual não faltam motivos para gritar, por isso é normal afirmar que não falte entre nós aqueles que gritem. Certamente está faltando quem escute o grito. Se estivermos atentos às periferias do mundo, perceberemos variados gritos ecoarem diariamente. As chamadas minorias sociais não deixam de se fazer escutadas. Não falta quem denuncie os crimes cometidos contra a comunidade LGBTI. Não cessam as denúncias contra os crimes motivados por intolerância religiosa. Assim, como os católicos são oprimidos no Iêmen, os povos de terreiro também  são nos morros do Rio de Janeiro. Lá pelo Talibã, aqui por milicianos associados a pseudos grupos “neopentecostais”. Noutra esfera, não falta quem grite contra o desmonte da previdência social, que afaga o sistema financeiro em detrimento da precarização do trabalhador. Não há quem deixe de gritar contra a violência cometida por policiais nos grandes centros, inclusive apontando paradoxalmente o próprio trabalhador da segurança como uma das vítimas.

Agora, no Brasil, estamos a gritar novamente contra a fome e a pobreza que se adensa feito óleo em tela a retratar o horror de mais de 5 milhões de pessoas. Não esqueçamos os flagelos de quem disputa migalhas nas praças de Fortaleza e em outros centros urbanos. Aqueles que estão a gritar na fila da combalida saúde pública, que igualmente sofrem com outros tantos a engrossar as filas dos desempregados. Como não se aliar às comunidades vitimadas de ações criminosas das grandes mineradoras? Não podemos nos esquecer do grito e do martírio dos imigrantes que se veem obrigados a deixar suas terras em função dos conflitos de ordem política e econômica, perfeitamente evitáveis. Há entre eles os refugiados climáticos, cuja ganância desenvolvimentista lhes surrupia o direito a ter um lugar.

Todos são gritos de excluídos e excluídas do sistema que mesmo diante da abundância, teima em produzir morte. Insiste no sequestro da cultura, apequena a arte, e isola a dimensão humana da fé.

Em tempo, como não gritar?! Se sabemos que a fila da saúde pública seria resolvida com alguma boa vontade? A fome, fruto que é de opções políticas, poderia ser banida com apenas 2,5% do orçamento destinado às guerras? O desemprego sairia das páginas de noticiários, caso não optássemos por um modelo econômico torpe e frívolo que transfere para o sistema financeiro toda riqueza produzida na base?

Outro dia, Gonzaguinha bem traduziu a expressão do grito enquanto instrumento popular de resistência. Na sua sabedoria dizia ele: “O grito da batalha quem espera nunca alcança…”  Aqui o que mais chama atenção é o verbo esperar, que deriva de esperança no seu sentido mais simples. Esse tipo de esperança talvez fizesse muito sentido em outras fases da sociedade, mas hoje não! Agora é preciso “esperançar”, ou seja, fazer acontecer bem ao termo freiriano de ver a construção social encarnada nas lutas e nos gritos.

Aqui reside a importância do “GRITO DOS EXCLUÍDOS e EXCLUÍDAS”. Há 29 anos, sempre a 7 de Setembro, os povos excluídos se enxergam nas ruas das periferias do Brasil. Este ano a bandeira da liberdade vem com o tema “Esses Sistema Não Vale”. Trata-se de uma audaciosa e necessária alusão ao sistema econômico que mata,  em especial –  a empresa Vale do Rio do Doce –  responsável pela morte de centenas de pessoas e do desaparecimento de várias formas de vida em nome do lucro. O Grito dos Excluídos e Excluídas é puxado por várias comunidades da Igreja Católica, mas é fruto de muito diálogo com as bases que sofrem toda sorte de opressão, seus reais protagonistas.

Por que o Grito dos Excluídos? Ele é necessário, porque é político, ao nutrir o sentido mais sublime de comunidade. É necessário por que é antropológico, no limite de pôr em marcha todos aqueles e aquelas que ainda conseguem guardam algum grau de indignação. É necessário porque é fisiológico, pois transborda toda carga de energia que se acumula dentro de si frente à opressão. Com muita sensibilidade histórica  – O Grito dos Excluídos atualmente é a expressão máxima do esperançar, do fazer-se um com todos e com toda a responsabilidade – ou seja, uma resposta a possibilidade – comunitária que se encerra em um grito.

Precisamos encontrar-nos nos diversos gritos que ecoam das periferias do mundo. Precisamos empunhar a bandeira da vida e da liberdade. Precisamos gritar e organizar os gritos que nos cercam. A final como diria o poema de João Cabral de Melo Neto “um galo sozinho não tece o amanhã”.

Vamos Gritar juntos?

Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.

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Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.