Pseudoprotopoemas de Vicente de Magalhães ou: a lira desafinada dos vinte anos tortos – por Pedro Henrique

 

[Arte poética]

 

A caneta.

O lápis.

Uma ponta de faca desenhando a sangue

Pensamentos

Palavras

Sentimentos embebidos de razão, desrazão…

Expressões súbitas, falhas…

 

O significado.

A mão.

O gesto entrelaçando os saberes divinos

de um quase ateu,

quase proletário, quase intelectual,

quase que quase…

 

O momento:

Expressão eterna da circunstância.

Há de cravar na memória suas incertezas

Há de sucumbir.

 

CONFISSÕES EM CREPÚSCULO

“Por nossas confissões muito é o que a alma reclama” (Charles Baudelaire, As flores do mal)

 

[Peregrino de mim]

 

Sou o pior bicho de todos

Sou aquele que não aprendeu

[a conviver com os outros

De tudo eu faço mote

E digo coisas que não entendo

E me rendo

Ao vazio do que nunca é

E sempre busca ser

Eu mesmo

Ser contingente

A quem a vida se apresenta

Perfeita, mas insuficiente…

 

Sou mera rotina de cidade

Esvaindo-me de ponto a ponto

[sem a lugar algum chegar

Espero pasmo a vida

Ou um lastro de além-vida

Sem dizer o que subitamente

me faz sentir um peregrino de mim mesmo

E declino

Com a certeza da morte e a finitude da vida

Que nunca acaba!…

 

[Qualquer coisa de intermédio]

 

I

Enquanto penso, a tarde passa…

Olho em meu jardim

As flores que um dia prometi cuidar

– Estão todas mortas!

 

Meu corpo treme…

Sinto minha alma regressar

Ao perceber que enquanto sonhava

O mundo apodrecia.

 

Nada mais romântico,

Nada mais pleno

– Acendo um cigarro em minha homenagem!

 

Posso afirmar: um belo fim.

Assim como nas flores,

Morre em mim a esperança…

 

II

Quando no mais triste dos dias

Sentires dentro de si

Toda a angústia arder…

Não deixe que ali jaza a tua esperança!

 

Desfaça sua cara fúnebre

E sinta fluir a aurora

Que desce do céu toda manhã…

Não deixe que a tomem de ti!

 

Todo homem tem seu espectro,

Mas cabe somente a ti

Reerguer-se!

 

E nada tens a fazer a não ser calar…

 

Cala-te humildemente,

Pois na mais profunda solidão

Fez-se o poeta!

 

[Filho último]

 

Ah! triste sentimento agudo

Que vem das linhas tênues do pensar

Absorva-me as lágrimas

E esta dor profana que me rege o peito

E não me conforta a alma.

 

Oh! noites de insônia

Quem há de suportar?

Quem há de me consolar agora?

Eis aqui um momento puro

Tão puro que chego a chorar.

 

Sentimento sujo é o amor

O amor clandestino

Que ingênuo se instala

E quando pode então emergir

Suicida-se prematuro.

 

Farei o mais belo enterro

Que mãe ou pai algum um dia fez

Na morte de seu primogênito

De seu até então inesperado

Filho último.

 

INFAME LABUTA

“E foi Jerusalém aqui erguida entre negros Satânicos Moinhos?” (William Blake, Milton)

 

[Poema urbano-industrial]

 

Por um momento esqueço meu lirismo

Passando agora por áreas inférteis

Onde a vida se resume a nada

Puramente tecnicista.

Como podem amar e idolatrar esse senhor?

Uma figura tão exuberante e vil

Que há séculos destrói sonhos

E oprime seus filhos necessitados!

 

Não, não consigo acreditar.

Existe um campo suicida

Exalando dióxido de carbono

Será que só eu sinto?

Bem, me parece que a felicidade

Caminha paralela

E eu não consigo parar de pensar

Não, não consigo.

 

[O grito, de Edvard Munch]

 

Ferve em mim

O caos psicológico

Da lógica

Ilógica

De ser logicamente

Louco

De estar rouco

De tanto gritar

Nesse vazio

Da cidade

E de seus motores.

 

[Lar]

 

No escuro do meu quarto

Cricrila o grilo

Geme o gato

A batedeira e o rato.

Estou ficando louco!

Pego um isqueiro

Acendo o cigarro…

Berra o pai

Geme o gato

E o vizinho me atormenta

Com a rede em seu quarto.

Cricrila o grilo

Berra o gato

Minha mãe e o rato.

No forro um fantasma

Passo prá lá, passo prá cá

Como um touro na tourada!…

Arde as veias do meu saco

Com o tormento que é meu quarto…

 

[Visita a um economista]

 

Um profeta da modernidade,

do crescimento a todo custo

Conta-me, profetiza-me

As possibilidades do mundo futuro,

As possibilidades de manutenção

[do processo de negação da vida

Seu olhar penetrante

Sua eloquência

Sua boa aparência

E o cenário de vida campestre,

de paz com a natureza

– E, diga-se de passagem: espaço reservado a poucos! –

Envolvem-me,

Fazem-me acreditar nas verdades desse mundo

Porém…

– E alguns dirão que é divina revelação! –

A cidade grita-me suas angústias

E subitamente acordo.

 

LIRISMO CONCEDIDO

“Ela é tão bela, que, por certo, hão de ressuscitá-la” (Maiakovski).

 

[Cavaleiro moderno]

 

O cavaleiro solitário

Triste espera

Sua doce donzela

Que nem donzela é.

 

Seu semblante tristonho

Revela um sonho

Nunca antes vivido.

 

Perdeu toda a glória

Cavalo e amigo

Quando desiludido

Um novo amor tentou encontrar.

 

E agora só resta

Sua doce donzela

Que nem donzela é.

 

[O canceriano e a Lua]

 

A Lua se escondeu

Cansou-se dos homens

Brigou com o mar

 

Lua

Apesar de tudo

Sei que está lá

 

É menina fogosa

Se por um lado briga

Pelo outro goza.

 

[O tempo e o vento]

 

Percebi

Imprescindivelmente e sem rodeio

Que o vento que vinha

Perdeu-se

No contratempo do vento

Que veio.

 

[Ah que vontade de dizer…]

 

Ah que vontade de dizer

Exclamar

Tudo que em mim impera

Ah que vontade de esquecer

Apagar

Tudo que me faz sofrer

E não mais

Não

Nunca mais

Ter que viver aprisionado a ti

Aos teus beijos

A essa ânsia de insistir

Em não ser longe de ti.

 

[És como o céu…]

 

És como o céu: uma incógnita.

E és também estrela caída

A iluminar o triste céu de minha vida.

És como todas: única.

Mas és a única que realmente brilha.

 

És minha cura

E meu padecer

És doçura

E amargo sofrer

 

E mais do que tudo

Sei

Um dia hei de perder.

 

EXERCITANDO A RADICALIDADE

“’Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o próprio homem” (Marx)

 

[Cogito]

 

Pago, logo existo.

 

[Por uma poesia sem poemas]

 

O poema é um dilema

Entre viver ou fazê-lo

Entre matá-lo ou morrer.

 

[Aos satânicos moinhos]

 

Ó bela máquina, quanto da tua história

São lágrimas e carnificina!

Por te engendrarmos,

Quantos índios foram dizimados!

Quantos negros escravizados!

Quantos terroristas foram assassinados!

Para que tu fosses nossa, ó Grande Máquina!

 

Valeu à pena?

Tudo é válido pelo progresso.

[As flores e o capital]

 

No tempo em que flores eram somente flores,

suas pétalas tinham cheiro,

tinham gosto,

e até soavam algumas notas!

Se não tinham em si

meu coração projetava.

Aí veio o capital, fez das flores uma forma

de o reproduzir, fez do afeto seu marketing.

Já não as encontrava mais nos canteiros

– o homem cindido de seus meios em meio

a asfalto, fumaça e barulho, muito barulho! –,

para consegui-las precisava de dinheiro.

As flores agora custam dinheiro, e o dinheiro

custa trabalho – ou é o trabalho que custa dinheiro?

Muito complicado, melhor ir logo procurar um.

 

O comércio mundial de flores movimenta bilhões,

o Brasil está muito aquém disso,

mas chegaremos lá!

– Flores, flores, flores! Alguém vai querer?

 

[Primitivismo moderno]

 

Rios correm

enquanto carros, motos e ônibus

afogam o trânsito

– Extra! Extra! Bicicleta na moda,

para tentar desentupir toda a bosta!

Enquanto cantam os pássaros

buzinas, sirenes…

Respire o ar!

– fumaça

Observe a paisagem!

– asfalto, concreto…

Relaxe um pouco

– relógio não deixa

Enquanto espécies dão curso ao dogma: cadeia alimentar

guerra no oriente

no ocidente

religiosa, civil, militar…

Enquanto Deus é indizível

a besta (dinheiro) tem nome e número

e não é menos humana que o primeiro

Enquanto pássaros voam

sonhos se dissolvem

Enquanto nasce e corre o dia

o galo é morto

a galinha expele o ovo

o gado engorda

o leite estraga, azedo gosto

a febre passa e vejo um rosto: desgosto

homem indizível, intraduzível homem.

 

 

 

Não cortaríamos o falo de Cronos!

Nem abriríamos seu crânio!

Encravaríamos um punhal em seu coração maquínico!

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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