[Arte poética]
A caneta.
O lápis.
Uma ponta de faca desenhando a sangue
Pensamentos
Palavras
Sentimentos embebidos de razão, desrazão…
Expressões súbitas, falhas…
O significado.
A mão.
O gesto entrelaçando os saberes divinos
de um quase ateu,
quase proletário, quase intelectual,
quase que quase…
O momento:
Expressão eterna da circunstância.
Há de cravar na memória suas incertezas
Há de sucumbir.
CONFISSÕES EM CREPÚSCULO
“Por nossas confissões muito é o que a alma reclama” (Charles Baudelaire, As flores do mal)
[Peregrino de mim]
Sou o pior bicho de todos
Sou aquele que não aprendeu
[a conviver com os outros
De tudo eu faço mote
E digo coisas que não entendo
E me rendo
Ao vazio do que nunca é
E sempre busca ser
Eu mesmo
Ser contingente
A quem a vida se apresenta
Perfeita, mas insuficiente…
Sou mera rotina de cidade
Esvaindo-me de ponto a ponto
[sem a lugar algum chegar
Espero pasmo a vida
Ou um lastro de além-vida
Sem dizer o que subitamente
me faz sentir um peregrino de mim mesmo
E declino
Com a certeza da morte e a finitude da vida
Que nunca acaba!…
[Qualquer coisa de intermédio]
I
Enquanto penso, a tarde passa…
Olho em meu jardim
As flores que um dia prometi cuidar
– Estão todas mortas!
Meu corpo treme…
Sinto minha alma regressar
Ao perceber que enquanto sonhava
O mundo apodrecia.
Nada mais romântico,
Nada mais pleno
– Acendo um cigarro em minha homenagem!
Posso afirmar: um belo fim.
Assim como nas flores,
Morre em mim a esperança…
II
Quando no mais triste dos dias
Sentires dentro de si
Toda a angústia arder…
Não deixe que ali jaza a tua esperança!
Desfaça sua cara fúnebre
E sinta fluir a aurora
Que desce do céu toda manhã…
Não deixe que a tomem de ti!
Todo homem tem seu espectro,
Mas cabe somente a ti
Reerguer-se!
E nada tens a fazer a não ser calar…
Cala-te humildemente,
Pois na mais profunda solidão
Fez-se o poeta!
[Filho último]
Ah! triste sentimento agudo
Que vem das linhas tênues do pensar
Absorva-me as lágrimas
E esta dor profana que me rege o peito
E não me conforta a alma.
Oh! noites de insônia
Quem há de suportar?
Quem há de me consolar agora?
Eis aqui um momento puro
Tão puro que chego a chorar.
Sentimento sujo é o amor
O amor clandestino
Que ingênuo se instala
E quando pode então emergir
Suicida-se prematuro.
Farei o mais belo enterro
Que mãe ou pai algum um dia fez
Na morte de seu primogênito
De seu até então inesperado
Filho último.
INFAME LABUTA
“E foi Jerusalém aqui erguida entre negros Satânicos Moinhos?” (William Blake, Milton)
[Poema urbano-industrial]
Por um momento esqueço meu lirismo
Passando agora por áreas inférteis
Onde a vida se resume a nada
Puramente tecnicista.
Como podem amar e idolatrar esse senhor?
Uma figura tão exuberante e vil
Que há séculos destrói sonhos
E oprime seus filhos necessitados!
Não, não consigo acreditar.
Existe um campo suicida
Exalando dióxido de carbono
Será que só eu sinto?
Bem, me parece que a felicidade
Caminha paralela
E eu não consigo parar de pensar
Não, não consigo.
[O grito, de Edvard Munch]
Ferve em mim
O caos psicológico
Da lógica
Ilógica
De ser logicamente
Louco
De estar rouco
De tanto gritar
Nesse vazio
Da cidade
E de seus motores.
[Lar]
No escuro do meu quarto
Cricrila o grilo
Geme o gato
A batedeira e o rato.
Estou ficando louco!
Pego um isqueiro
Acendo o cigarro…
Berra o pai
Geme o gato
E o vizinho me atormenta
Com a rede em seu quarto.
Cricrila o grilo
Berra o gato
Minha mãe e o rato.
No forro um fantasma
Passo prá lá, passo prá cá
Como um touro na tourada!…
Arde as veias do meu saco
Com o tormento que é meu quarto…
[Visita a um economista]
Um profeta da modernidade,
do crescimento a todo custo
Conta-me, profetiza-me
As possibilidades do mundo futuro,
As possibilidades de manutenção
[do processo de negação da vida
Seu olhar penetrante
Sua eloquência
Sua boa aparência
E o cenário de vida campestre,
de paz com a natureza
– E, diga-se de passagem: espaço reservado a poucos! –
Envolvem-me,
Fazem-me acreditar nas verdades desse mundo
Porém…
– E alguns dirão que é divina revelação! –
A cidade grita-me suas angústias
E subitamente acordo.
LIRISMO CONCEDIDO
“Ela é tão bela, que, por certo, hão de ressuscitá-la” (Maiakovski).
[Cavaleiro moderno]
O cavaleiro solitário
Triste espera
Sua doce donzela
Que nem donzela é.
Seu semblante tristonho
Revela um sonho
Nunca antes vivido.
Perdeu toda a glória
Cavalo e amigo
Quando desiludido
Um novo amor tentou encontrar.
E agora só resta
Sua doce donzela
Que nem donzela é.
[O canceriano e a Lua]
A Lua se escondeu
Cansou-se dos homens
Brigou com o mar
Lua
Apesar de tudo
Sei que está lá
É menina fogosa
Se por um lado briga
Pelo outro goza.
[O tempo e o vento]
Percebi
Imprescindivelmente e sem rodeio
Que o vento que vinha
Perdeu-se
No contratempo do vento
Que veio.
[Ah que vontade de dizer…]
Ah que vontade de dizer
Exclamar
Tudo que em mim impera
Ah que vontade de esquecer
Apagar
Tudo que me faz sofrer
E não mais
Não
Nunca mais
Ter que viver aprisionado a ti
Aos teus beijos
A essa ânsia de insistir
Em não ser longe de ti.
[És como o céu…]
És como o céu: uma incógnita.
E és também estrela caída
A iluminar o triste céu de minha vida.
És como todas: única.
Mas és a única que realmente brilha.
És minha cura
E meu padecer
És doçura
E amargo sofrer
E mais do que tudo
Sei
Um dia hei de perder.
EXERCITANDO A RADICALIDADE
“’Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o próprio homem” (Marx)
[Cogito]
Pago, logo existo.
[Por uma poesia sem poemas]
O poema é um dilema
Entre viver ou fazê-lo
Entre matá-lo ou morrer.
[Aos satânicos moinhos]
Ó bela máquina, quanto da tua história
São lágrimas e carnificina!
Por te engendrarmos,
Quantos índios foram dizimados!
Quantos negros escravizados!
Quantos terroristas foram assassinados!
Para que tu fosses nossa, ó Grande Máquina!
Valeu à pena?
Tudo é válido pelo progresso.
[As flores e o capital]
No tempo em que flores eram somente flores,
suas pétalas tinham cheiro,
tinham gosto,
e até soavam algumas notas!
Se não tinham em si
meu coração projetava.
Aí veio o capital, fez das flores uma forma
de o reproduzir, fez do afeto seu marketing.
Já não as encontrava mais nos canteiros
– o homem cindido de seus meios em meio
a asfalto, fumaça e barulho, muito barulho! –,
para consegui-las precisava de dinheiro.
As flores agora custam dinheiro, e o dinheiro
custa trabalho – ou é o trabalho que custa dinheiro?
Muito complicado, melhor ir logo procurar um.
O comércio mundial de flores movimenta bilhões,
o Brasil está muito aquém disso,
mas chegaremos lá!
– Flores, flores, flores! Alguém vai querer?
[Primitivismo moderno]
Rios correm
enquanto carros, motos e ônibus
afogam o trânsito
– Extra! Extra! Bicicleta na moda,
para tentar desentupir toda a bosta!
Enquanto cantam os pássaros
buzinas, sirenes…
Respire o ar!
– fumaça
Observe a paisagem!
– asfalto, concreto…
Relaxe um pouco
– relógio não deixa
Enquanto espécies dão curso ao dogma: cadeia alimentar
guerra no oriente
no ocidente
religiosa, civil, militar…
Enquanto Deus é indizível
a besta (dinheiro) tem nome e número
e não é menos humana que o primeiro
Enquanto pássaros voam
sonhos se dissolvem
Enquanto nasce e corre o dia
o galo é morto
a galinha expele o ovo
o gado engorda
o leite estraga, azedo gosto
a febre passa e vejo um rosto: desgosto
homem indizível, intraduzível homem.
Não cortaríamos o falo de Cronos!
Nem abriríamos seu crânio!
Encravaríamos um punhal em seu coração maquínico!