Embora finja ignorar, muita gente sabe que o maior, mais importante e mais ousado empreendimento cearense é o conjunto de serviços públicos, que atende toda a população e mobiliza grande contingente de trabalhadores a um custo bilionário.
Pouco ou nada se debate ou se informa sobre o assunto. Fala-se muito mais de hidrogênio colorido do que sobre a prestação de serviços de saúde e educação, por exemplo. Aliás, de educação até que se fala, mas só pra repetir e aplaudir um bom resultado alcançado na última década.
Como permanece a teimosia de que precisamos falar do Ceará, para entender como temos tantos pobres (e ao mesmo tempo tantos bilionários), encontramos em meia dúzia de números uma deixa. Comecemos com um flashback.
A conversa aconteceu, o trecho citado é exato. Eram os anos 1980. O governo do Ceará era o assunto dos três senhores que conversavam num fim de tarde.
Empresário: “…qual é o maior problema a atrapalhar o desenvolvimento do estado?”
Secretário de Estado: “…cento e cinco mil pessoas na folha mensal. É um peso exagerado, um fardo intolerável…”
Economista: “… você fala como se fosse uma carga inútil. Não dá pra considerar que você tem um exército de profissionais que podem ser articulados e orientados a objetivos de desenvolvimento?”
A pergunta do economista incomodou o secretário, esfriou a conversa. Sem resposta, a questão permaneceu. O pensamento do empresário estava mais perto do ponto de vista do secretário e mais distante da visão do economista. Quanto mais alta a posição da pessoa na hierarquia e na pirâmide social, menos ela percebe a importância do serviço público (em parte porque ela usa escola privada, tem plano de saúde, carro blindado…). Essas pessoas não olham para o lado, não veem e não sentem o que acontece ao redor.
É quase teimosia falar em serviço público, os ouvidos são moucos. Nem o parlamento nem a imprensa parecem se sentir confortáveis para tratar do assunto. Quando muito comenta-se a disputa pelos cargos relevantes, pouco antes e pouco depois da eleição.
Insistindo e não desistindo, buscamos números e valores no Portal da Transparência do Ceará, que dizem ser o melhor do Brasil. Desta vez, depois de muitas horas de navegação e muita tentativa e erro, tivemos algum sucesso, com eventuais imprecisões.
Vejam os números e valores, servidores e remuneração, coisa bem básica. Referem-se a dezembro de 2022 e estão arredondados.
1. Total de Servidores …..153 mil (mais acumulações e situações específicas)
2. Remuneração paga ….$999 milhões/mês
A remuneração mensal média do servidor do estado é 6,5 mil reais, é só dividir um número pelo outro.
Entre os servidores, há 93 mil ativos, com remuneração média de 7,2 mil reais, 44 mil aposentados com remuneração média de 5,5 mil reais e 19 mil pensionistas com remuneração média de 4,1 mil reais.
A melhor remuneração está na Secretaria da Fazenda, que tem 2.557 pessoas com média de 30 mil reais, com valores individuais variando, no topo, até 60 mil reais e, na base, 6 mil reais.
Na Educação, tomando os servidores da Secretaria, eles são 48 mil, remuneração média de 5 mil reais.
Na Saúde, os servidores da Secretaria são 15 mil, remuneração média de 5,6 mil reais.
Aparentemente, a amplitude da variação (distância entre os valores) da remuneração na Educação e na Saúde é a mesma da Fazenda. Ou seja, os picos de valores são o dobro da média.
Observa-se que os profissionais que cuidam do dinheiro (Fazenda) ganham em média seis vezes mais do que os que cuidam de pessoas (educação e saúde). Se fosse iniciativa privada, a justificativa seria óbvia: lei da oferta e da procura. Em se tratando de serviço público, há um enorme comportamento inercial que engessa situações. A falta de transparência facilita acumulação e esquecimento de erros e injustiças na remuneração. O poder de pressão também faz diferença. Em todo caso, os gestores públicos sempre podem dizer algo como “em todo lugar é assim“.
Bem que essa remuneração poderia ser debatida em outros termos — quem é estratégico, quem não é, quem é atividade fim, quem é atividade meio, qual é a atividade mais sensível, quem é o cliente direto das três áreas…
Em quantidade de servidores também pouco se pode afirmar sobre qual das três secretarias tem número proporcional adequado, excesso ou carência. Curiosamente, a Fazenda pode ter excesso, e a Educação, carência.
De todo modo, fica aparente a ideia de que não há um planejamento mais rigoroso dos recursos humanos. Não se divulga um documento ao distinto público com objetivos e metas de cada área do serviço público estadual e seus respectivos prazos e métodos de acompanhamento, medição e feedback. Isso se torna especialmente estranho quando o Estado é o maior e mais permanente empregador de mão de obra. E ninguém tem uma clientela tão grande a atender (toda a população).
Precisamos calar, ops, falar sobre o Ceará.