Na segunda metade dos anos 1970, operando no mercado financeiro, era sócio-gerente de uma corretora de câmbio e valores. Diariamente, pelas 9 da manhã, ao chegar ao escritório, mandava comprar o jornal O Povo. O Office Boy me trazia e demorava a me entregar; ele, um garotão sertanejo ingênuo e de poucos estudos, fazia questão de ler a manchete. E fazia sempre o mesmo comentário: “Esse Ceará tem visto muito dinheiro. Todo dia tem milhão”.
Era anúncio de linha de crédito para o algodão, um financiamento novo para a lagosta, recursos para couros e peles de boi, cabra e carneiro, liberação de cotas de exportação, prorrogação de débitos de agricultores…sim, todo dia tinha milhão.
Um salto para o presente.
Há poucas semanas li na coluna do experiente Egídio Serpa, no Diário do Nordeste, uma nota sobre uma empresa agrícola cearense que produz e exporta frutas nobres. Emprega dez mil pessoas, boa gestão, boa tecnologia. Nenhuma surpresa, nenhum milagre. Existe boa terra, sol, água, mão-de-obra, mercados, gente empreendedora. Não vai para a primeira página.
Uma panorâmica do passado para o presente.
Refinaria, siderúrgica e ZPE. Nas últimas cinco décadas esses três “projetos” redimiriam o Ceará. Dois deles estão aí, no Complexo Industrial e Portuário do Pecém, este outro também foi um projeto redentor. Aqui e ali surge algo mais pontual: é o hub disso e daquilo. Já passaram pelas manchetes dos jornais o hub aéreo, o hub portuário, o de saúde, o de energia renovável, de conexão tecnológica…um carrossel de hubs.
Os países, os estados e as empresas precisam fazer dois discursos. Um de crise, outro de otimismo com o futuro. Um evita cobranças e reivindicações. É preciso manter essa gente quieta. O outro discurso diz que tudo vai melhorar, mas só no futuro, e assim mantém acesa a chama da esperança. O futuro está bem ali. Na linha do horizonte. “Espere, tenha fé. Entre na fila. Se a fila não anda, a culpa é sua, que entrou na fila errada”. O Ceará não foge à regra geral de manter essas duas estratégias complementares, com jeitão de contraditórias. Alguém ganha, alguém perde, alguém chancela, alguém comanda.
O nome do Office Boy era sugestivamente Cândido. Quase cinco décadas depois, o que mudou é que “esse Ceará” passou do milhão para o bilhão. Sim, temos bilionários de carne e osso, e ideias bilionárias promissoras. E, sim, no passado os negócios tinham raizes, eram vocações naturais (caju, cera de carnaúba, algodão, lagosta…).
O próximo hub (ou a redenção) já está nas manchetes. Hidrogênio Verde.
Leio no jornal digital “Opinião” que o primeiro negócio da área prevê investimentos de seis bilhões de dólares e vai oferecer oitocentos empregos. Quanta grana!
Admitindo que a conta é rigorosa, quanto custa cada emprego? Quem vai fazer o investimento? Se é o Ceará, o mínimo que se pode dizer é que é muita grana. Se o investimento é privado, o que esse investidor vai pedir em contrapartida?
Leio no O Povo sobre outro projeto redentor: “O Conselho Nacional de Direitos Humanos apontou violação aos direitos humanos no Projeto Santa Quitéria, que planeja a exploração da maior jazida de urânio associado ao fosfato do Brasil localizada em Santa Quitéria, no Interior do Ceará.” Diz a matéria que a comunidade local recebe mensalmente 27 carros pipas de água para toda a população, por mês, o que o projeto consumirá por hora. Investimento: 2,3 bilhões de reais.
Isoladamente, esses fatos têm uma leitura. Juntos, outra bem diferente. Precisamos falar sobre o Ceará…