Precisamos falar do Ceará…Parte 27

Para que serve um bilionário?

Esta pergunta encerrou texto anterior desta sequência, e pessoas amigas sugeriram voltar ao assunto.

Os Estados Unidos exploraram bem a ideia de “ganhar o primeiro milhão”. A chance é mínima, mas atrai e convence na mesma proporção das loterias e dos cassinos. Esse estímulo foi importante para a prosperidade americana, mas o mais central elemento gerador do desenvolvimento deve ter sido a força estratégica desproporcional do país, seu poder de impor sua língua, sua cultura, sua moeda e de submeter a seus interesses (e de suas empresas) os outros países e seus mercados, através de líderes nativos voluntariamente submissos para se deixarem explorar.

Quem não lembra um presidente da República brasileiro dizendo “governar é abrir estradas”, quando a indústria automobilística era decisiva para os EUA? Ou comunidades inteiras (intelectuais, empresários, jornalistas) repetindo sem reservas o mantra da globalização, para justificar o enfraquecimento da indústria local, para eliminar controles cambiais e permitir a especulação e a ciranda de dinheiro improdutivo? E a não fixação de qualquer limite ou controle para as big techs e seus privilégios e abusos? Esses movimentos e discursos contrários ao interesse brasileiro (e em outros países subdesenvolvidos) têm a ver com a conveniência de multinacionais que avançavam da dimensão milionária para a dimensão bilionária lá fora.

A conexão da grande empresa com os governos é usual. Nos EUA tanto quanto aqui.

Um fato. A bilionária empresa americana disse ao governador do estado onde queria se instalar no Brasil:
— Queremos a doação de uma extensa área na região metropolitana, com limpeza e terraplanagem do terreno incluídas. Queremos também a imediata expansão das opções de acesso rodoviário, assim como infraestrutura pronta e condições especiais de preço e suprimento de água, serviço de esgoto e energia. Claro, também o policiamento específico da área, sob nossa orientação. Para fechar o pacote, queremos isenção de tributos estaduais e municipais por 30 anos.

Virou praxe este tipo de reivindicações e negociações. Alguns empreendedores privados até fazem leilão entre dois governos para ver quem dá mais. É o que chamam de guerra fiscal. Ou apenas outra forma da grande empresa ficar ainda maior.

Um mês depois o governador surpreendeu e negou tudo. Disse:

— Sua empresa pede muito e oferece poucos empregos de qualidade. Vocês abusam do poder financeiro e quebram pequenas e médias empresas nativas que não conseguem competir, pois não há igualdade de condições. Vocês sufocam com seu poder de compra até os seus fornecedores, esmagando suas margens de lucro. E ao não pagar os impostos, fogem de dar sua contribuição social mínima. Procurem outro estado.

A história não traz nomes, mas tem base em fatos reais. Aconteceu faz uns dez anos, quando um gigantesco supermercado escolhia no interior do Paraná uma sede.

Outro fato. Começo dos anos 1980 no Ceará. Teria dito o coronel Virgílio Távora ao jovem economista que indicaria para governador:

— Vá conversar com o doutor Edson Queiroz, o apoio dele é necessário.

Mais um fato exemplar. Ai por volta de 2010. Num depoimento para um programa de televisão (TV O Povo), o ex-governador Gonzaga Mota contou:

— Para indicar o doutor Tasso Jereissati para governador só consultei duas pessoas. O médico dele e o doutor Airton Queiroz.

Observem como quatro pessoas (de indiscutível liderança política e empresarial) escrevem a história e definem rumos de um estado e de toda sua população. Parece natural, parece inevitável.

Política e dinheiro sempre se encontram. Ora nos gabinetes, ora nos orçamentos. Governantes e super ricos sempre dialogam. Há muito em jogo. As responsabilidades, as possibilidades e, eventualmente, os interesses são imensos. O sucesso se reparte entre quem tem poder, seja o do voto, seja o dos negócios. A prosperidade (ou a busca dela) tende a uni-los.

A competição é a regra do capitalismo. O tamanho influencia a força. A desproporção de tamanho e força entre as empresas de um mesmo setor revoga leis e princípios da disputa de mercado. A empresa bilionária escapa dos limites da empresa normal. Com tal desproporção não se pode falar em competição. Onde não há competição não há capitalismo.

Se a empresa bilionária (uma organização racional) corre o risco de se tornar um problema, muito maior pode ser o problema da pessoa bilionária (humanamente condicionada por preferências, para não falar de outras coisas).

O bilionário pertence a uma comunidade pequena. Estima-se que entre mais de 7 bilhões de pessoas do planeta, só 2,7 mil têm um bilhão de dólares. No Brasil seriam 300, no Ceará, declarados 16, números de famosa revista estrangeira.

Pela proporção da população Ceará/Brasil, deveria haver 12. Pela proporção do PIB, o natural é que o Ceará tivesse 6. Números redondos e estimados. E só 4 estados brasileiros superam o Ceará. Bahia e Pernambuco têm bem menos bilionários.

Uma curiosidade. Há um bilionário na educação, outro na saúde. São áreas onde o serviço público se deve oferecer com qualidade e de forma universal e gratuita. É apenas curioso.

O bilionário (que no começo era um ativo e criativo empreendedor) se põe na defensiva assim que alcança a posição. O grau de bilionário vale mais que qualquer outro (mestre, doutor, excelência…). Claro, nada é mais exclusivo, nada é mais distintivo. A palavra chega antes da pessoa. O adjetivo é mais que o substantivo.

A atitude defensiva é necessária. Ou ao menos prudente. Imagina alguém chegar na posição e, por algum descuido, perder a condição…

O que o bilionário tende a fazer? Novos empreendimentos, não, provavelmente não. Por que correr riscos? Novos sócios e parceiros, também não. Afinal em quem confiar? Gerar mais empregos e pagar mais tributos, nem pensar. (Proporcionalmente, ninguém paga menos impostos que ele). Melhor ficar à espera das inevitáveis “oportunidades”, os “negócios de ocasião” que amigos espertos trarão. E com cuidado para bem identificar os espertos que não são muito amigos. Em todo caso, o próprio sistema financeiro oferece ganhos excepcionais na velha e boa ciranda da especulação. Assim o bilionário é socialmente menos útil que o milionário, na medida que este continua empreendedor.

As exceções a essas regras são honrosas. Ficaram no passado. Esses pioneiros lutadores lançaram, desenvolveram e deixaram alguns empreendimentos consolidados e vários jovens herdeiros, de quem pouco se espera e nada se pode cobrar.

De qualquer maneira é difícil entender, e mais difícil ainda explicar, por que o Ceará tem sucesso na formação de bilionários. Eles são procurados para participar do jogo político. E alguns entram abertamente; outros, discretamente. É possível que todos sejam consultados, alguns sejam ouvidos e um ou outro seja obedecido.

O problema não é o sucesso. O problema é que este tipo de sucesso redunda em cruel e excludente desigualdade. É tanta e tamanha, e tão velha e profunda a pobreza cearense que não pode ter-lhes passado despercebida. Seja pelos bilionários, seja pelos governantes. Sim, o Ceará tem alguma prosperidade, mas tem pobreza demais. Os pobres estão cuidadosamente escondidos nos portais da transparência, invisibilizados na imprensa, ignorados nos planos e relatórios, apenas convocados nas eleições.

Em tempos de eleição, quando se deveria minimamente sonhar para definir o futuro a partir de um debate sobre o passado, uma luz devia clarear tudo. Não, esse debate não acontece, há um exército de pessoas prontas a evitar qualquer questionamento. Há um sistema e uma lógica que impedem a entrada da luz. Não há lugar, não há momento, não há interlocutores. São tantos os minúsculos, pequeninos, médios e grandes os interesses…Tudo flui para um conveniente silêncio. A campanha passa e, bem, fica tudo para depois.

Por que a pobreza não diminui? Não é por azar ou por acaso. Nem pelas razões tradicionais. O Ceará não pode mais alegar a descontinuidade administrativa, o endividamento, o desequilíbrio fiscal, a incapacidade de investir…Esses óbices foram declarados superados. Falta uma explicação para esta velha frustração. Certamente houve algum erro, omissão ou incompetência.

O Ceará, entre suas lideranças, não tem a atitude ou a humildade de quem errou. Este Ceará parece convicto de que vem acertando. Algo, entretanto, está gravemente errado para essa gente humilde, trabalhadora e pacífica.

Para que serve um bilionário? Difícil responder.

Para que serve uma massa de gente pobre todo mundo sabe.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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