Precisamos falar do Ceará… Parte 18

Não há necessariamente uma relação de causa e efeito entre o processo de redemocratização do Brasil (e alcança o Ceará) nos anos 1980 e uma mudança radical na gestão do serviço público, embora a correlação seja inevitável.

Com o tempo quase tudo muda, muita coisa aparece e outras desaparecem ou se transformam, o que pode facilmente confundir um pesquisador, um observador.

Com os olhos no Ceará, pode-se dizer que duas características marcantes nitidamente entraram na administração pública, sobretudo no poder executivo, esfera de decisão e ação de prefeitos e governadores.

Uma delas foi a financeirização. A outra foi o marketing. Entraram discretamente, mas de maneira firme, com força suficiente para se sobreporem às outras características que orientavam o processo de planejamento, decisão e ação do executivo.

E no Ceará, de quem Virgílio Távora, que muito desta terra sabia, dizia “se considerar o umbigo do mundo”, financeirização e marketing passaram a governar os governos, e isso foi um erro, um excesso.

No marketing, houve uma incompreensão importante. Todo o foco dos gestores foi para a comunicação, que é uma questão menor, operacional e de curto prazo na gestão pública. Em vez de pensar em bem atender às necessidades e desejos da população em sua maioria, que é a missão do marketing, apenas criaram-se secretarias de comunicação, centralizaram nelas poder e nelas concentraram orçamento, colando-as diretamente ao lado do governador e do prefeito. Não demorou nada para que a comunicação fugisse cada vez mais do interesse público, levando junto o gestor. Logo, logo, a preocupação e a prioridade máxima do gestor era a repercussão do que se fez hoje, a notícia do dia seguinte. Prioritária e urgente,a imagem do governo e do governante, a comunicação.

A financeirização acontecia pela força do dinheiro. Em algum momento anterior definiam-se políticas públicas, e a elas se dedicavam recursos orçamentários, e para elas se buscavam linhas de financiamento. Eram movimentos e articulações da cidade para (e com) o estado, e do estado para (e com) a União. Tudo inverteu-se, o dinheiro e a linha de financiamento é que passaram a orientar as políticas públicas estaduais e municipais. Não deixa de ser, em certa medida, pragmático e lógico, mas não é boa estratégia deixar que a disponibilidade do dinheiro oriente as prioridades da maioria da população.

Imaginem os efeitos de longo prazo que tal inversão pode provocar, não são poucos, não são positivos. Ao contrário, são muitos e negativos. Para complicar e para piorar, tal inversão aconteceu quando os limites orçamentários se apertaram e as regras de responsabilidade fiscal é que viraram a prioridade das prioridades.

A qualidade de vida da maioria da população é direta e duramente afetada pela qualidade do serviço público. Pense aqui e agora nos usuários do transporte coletivo, nos jovens da escola gratuita, nos usuários da saúde pública e nos atendidos exclusivamente pela segurança oferecida pelo Estado. Mas não apenas nessas áreas. A máquina pública tem força e recursos humanos e financeiros para gerar empregos, para melhorar a renda, incrementar a infraestrutura, quebrar inércia, mobilizar apoios, enfim, atender necessidades e desejos da maioria. Tem-se assim uma ideia da dimensão deste tema, a qualidade.

Lembro um repórter perguntando a um governante eleito por quais critérios nomearia seu secretários. A resposta foi na seguinte direção geral: eles precisarão ter articulação com a sociedade. Bom critério. Mas não para ser geral e fundamental. Não consigo imaginar que essa “articulação social” seja especialmente desenvolvida em professores, policiais e médicos, para ficar em três exemplos. Indo direto ao ponto, em alguns casos parecia ter o governante nomeado secretários bons de papo (relação com a imprensa, desempenho em palestras e discursos etc), hábeis em lidar com a comunicação. Azar da saúde, da educação, da segurança…azar da população.

Um secretário de saúde relata o fato de que levou ao governante uma ideia para melhorar rápida e radicalmente o atendimento ao cidadão. Ao final, o governante perguntou de onde ele (secretário) tiraria os recursos ou que linha de financiamento haveria. “Não sei, sou secretário só de saúde”. Ideia e projeto todo mundo tem, disse o governante. E o assunto morreu.

Os governadores cearenses (não apenas eles) orgulham-se do equilíbrio das contas estaduais, que, de um modo geral, apontam para despesas menores que arrecadação. É o dinheiro com a marca da “responsabilidade fiscal”. Como se isso fosse objetivo de governo. Não é. É apenas cumprimento da lei. E dinheiro.

Os governantes cearenses não falam sobre qualidade do serviço público. Esta é a regra geral. A exceção é o que vai bem no serviço público. Como agora, que houve reconhecido ganho de qualidade na educação, fala-se de educação. É só. Do desenvolvimento do estado facilita apenas aproveitar os momentos em que a variação do PIB é positiva, e, claro, falar de projetos e visões de futuro para manter acesa a esperança. Não é, em nenhum dos dois casos, um debate aberto e democrático sobre interesse da população, sobre qualidade do serviço público. É comunicação.

Os japoneses são boa referência em gestão da qualidade total. Para eles, todo problema de qualidade precisa ser imediatamente enfrentado. Mesmo quando ele é pequeno, por menor que seja. É fácil resolver problemas quando eles ainda são pequenos. Dito de outra forma: o problema grande de hoje, ontem foi pequeno. Pensem nos problemas hoje gigantescos da área de segurança, ontem pequenos.

Será que um dia a maioria da população cearense receberá um serviço público de qualidade? Será que um dia governador e prefeitos vão tratar da questão com a devida abertura e honestidade? Ou a comunicação e o dinheiro continuarão mandando nas prioridades? Será que chegaremos à privatização total antes?

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

1 comentário

  1. ADRIANA SOARES ALCANTARA

    sobre o artigo “precisamos falar sobre o ceara – parte 18” concordo!!! A ideia de boa gestão deve ser repensada, potencializar as coisas boas e caçar o que não está bom para melhorar. Isso faz um bom gestor.