Pré-leitura do livro TEATRO COMO ENCANTAMENTO, de Oswald Barroso

O AUTOR

Oswald Barroso era bacharel em Comunicação Social, Mestre e Doutor em Sociologia, pós-graduado em Gestão Cultural, professor universitário, poeta, jornalista, folclorista, teatrólogo e escritor (vinte livros publicados). Praticamente todos os seus 18 textos para teatro foram encenados, alguns premiados regional e nacionalmente.

CIRCUNSTÂNCIAS

O livro é o resultado de 35 anos de pesquisas sobre o teatro tradicional popular, empreendidas pelo autor, como referência para seu trabalho como ator, autor, encenador, professor e crítico de teatro. Esta pesquisa também foi base de sua tese de doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.

A PUBLICAÇÃO

O livro TEATRO COMO ENCANTAMENTO – Bois e Reisados de Caretas, de autoria de Oswald Barroso, desdobramento de seu Doutorado em Sociologia, foi lançado em 2013, pelo Armazém da Cultura. O livro tem 430 páginas, mais de 300 referências bibliográficas, tem apresentação do professor e pesquisador Armindo Bião.

A IMPORTÂNCIA DO LIVRO

Trata-se de uma pesquisa séria, de profundidade e de qualidade. Ao apresentá-la, o professor e pesquisador Armindo Bião diz que o livro é bom, belo e útil. Mais que isso, o livro é necessário, gostoso, encantador.

O LIVRO

Oswald entra no mundo encantado dos Bois e dos Reisados e dedica cada um dos onze capítulos do livro a um dos aspectos relevantes do espetáculo. Apesar de atender a critérios e rigores naturais numa obra de origem acadêmica, a leitura flui com leveza, quase no ritmo da música e da dança dos Reisados. A referência fundamental é sempre o teatro. O autor desenvolve sua pesquisa fazendo paralelos constantes com o teatro tradicional (e outros tipos de teatro).

O contexto, a apresentação, os entremeios, a performance cênica, o riso brincante, o dom brincante, incorporação e memória, o teatro como encantamento e a despedida são alguns dos temas apresentados com detalhes. Os capítulos do riso e do encantamento são momentos especiais da obra, quase imperdíveis, um para rir, outro para compreender.

O encantamento e o duplo são conceitos importantes para a compreensão e para o deleite da leitura. Na verdade, encantamento também é o que o leitor sentirá se deixar-se levar pela prosa do autor.

CURTAS

“Nos Reisados não se representa a realidade, mas se constrói uma outra realidade, que é uma correspondente da realidade cotidiana. Neles se vive a realidade em uma dimensão cósmica. Por isto, nos Reisados, os brincantes não representam, vivem uma vida desencantada, uma outra vida, que é um duplo da vida vulgar.

“O riso brincante é o riso dionisíaco, avesso a tudo que é apolíneo, equilibrado, harmonioso.

“Há toda uma semiótica de gestos nos braços estendidos em recolhimento, súplica ou adoração, na boca entreaberta, no vibrar do corpo em transe extático, na posição desigual dos dedos.

“Cada personagem é um deus, um semideus, que não apenas incorpora forças cósmicas e coletivas, como carrega em si um pouco de todos os outros personagens.

“O mestre Sebastião Cosmo (de Juazeiro do Norte) confessou-me, certa vez, que, inspirado nas grandes produções de Hollywood, havia mandado confeccionar um capacete de soldado romano para brincar no Reisado. O tal capacete, porém, logo se tornou motivo de troça por parte do público e dos brincantes, o que fez Sebastião voltar ao seu velho e tradicional capacete de Reisado.

“Na sucessão de funções, o brincante pode chegar a Mestre, embora a maioria estacione como Primeiro Galante, Segundo Caboclo, Mateus ou Catirina.
Ainda hoje, os brincantes mais velhos, na maioria, são analfabetos ou semianalfabetos.

BONS MOMENTOS

“Nos Reisados se acredita que a realidade é passível de encantamentos, ou seja, que sob a expressão do cotidiano pode se esconder uma realidade outra, ou mesmo uma segunda dimensão da realidade, só revelada em determinadas circunstâncias. Do mesmo modo como, por efeito de encantamento, através de filtros, em situações ou por meios especiais, alguém pode ser transportado a uma dimensão outra da realidade. No caso dos Reisados de Congo e dos Bois fortalezenses, a realidade que se desencanta durante sua função é de uma sociedade de reis, como está demonstrado no livro Reis de Congo. Uma sociedade onde todos os homens e mulheres são pessoas especiais, nobres, reis, rainhas, princesas, acompanhados de suas embaixadas, indo em cortejo rumo à Terra Santa, ter contato com o próprio Deus vivo. Do mesmo modo como esta sociedade de reis se desencanta, durante a função do Reisado, por encanto a plateia, formada pela comunidade onde os brincantes se apresentam, tem acesso a essa realidade assim revelada.

“A noção de duplo, no universo da religiosidade popular, pode ser mais bem entendida no exemplo das duas sepulturas fronteiriças, em que está enterrado o Conselheiro Pedro Batista, no cemitério do município baiano de Santa Brígida. Ali, ele está duas vezes enterrado. Em sua forma primeira e, depois, na forma de um duplo. Isto porque, anos após a morte desse beato de muitos seguidores, fundador da cidade, apareceu na região um outro Pedro com características de santidade semelhantes às do primeiro, fato que levou os romeiros a acreditarem ser este segundo Pedro um duplo do primeiro, uma outra forma tomada pelo espírito do primeiro…Aliás, no entendimento místico dos romeiros, todos estes grandes beatos, ou líderes religiosos populares, entre eles Pe. Cícero e Frei Damião, são formas humanas do Espírito Santo, sendo, portanto, uma só e mesma pessoa, ou mais precisamente, uma só e mesma entidade.

“Analiso as características do cômico nos Bois e Reisados, observando que se trata do riso coletivo da festa popular, acionado pelo corpo grotesco de brincantes, que se veem como parte da natureza. Coerentemente com a natureza devocional dos folguedos, o riso dos Bois e Reisados é também um riso sagrado, riso de deuses que brincam, sendo, no mesmo sentido, um riso que presentifica a utopia, em folgança e abundância. É o riso do mundo invertido, que rebaixa tudo o que se quer respeitável e superior; riso dionisíaco, que zomba da valentia e do instituído, que brinca com as palavras e com os sentidos, desfaz os vícios humanos, para recuperar o indivíduo, trazendo-o de volta ao convívio da comunidade.

“Para os brincantes, o Reisado é um rito de renovação do mundo. E como o mundo foi criado por Deus, o início do Reisado é um apelo ao Divino, rito que se dá com a Abertura da Porta, seguida da reza ao pé do oratório na sala de frente da casa escolhida. Visto por este ângulo, o Reisado é um rito de criação do mundo. E a Abertura da Porta seu gesto inaugural. A casa se transforma em uma espécie de capela. Por isto, a Abrição da Porta é tão importante, é como se se pedisse licença para penetrar no interior da casa/capela, espaço sagrado. É como se a brincadeira toda, a partir de então, se desse no interior da casa/templo/espaço sagrado.

“Tanto quanto os brincantes, o público é elemento indispensável na brincadeira. Conhece o brinquedo e dele participa. Seu prazer é rever o conhecido, na forma inesperada como vai acontecer. Conhece os brincantes, partilha com eles a mesma linguagem, os mesmos costumes, humores, gostos e sensibilidade. Faz parte do mesmo universo cultural…Dentro da brincadeira, as pessoas da comunidade têm liberdade quase total. Há mesmo quem entre no jogo do terreiro, se acaso souber como. A exceção se faz para os embriagados inconvenientes, que são postos para fora pelos soldados do Reisado. Na maior parte das vezes, porém, o público participa respondendo a tiradas e brincadeiras das figuras e bichos, sendo alvo de suas perseguições e arremetidas.

“… Boa noite, meu Capitão,/ Tava doido pra lhe ver./Venho trazendo uma carta/Que Deus mandou pra você./ Essa carta vem do céu,/ Eu vou ler pra você ver./ A carta diz o seguinte:/ Caro amigo Capitão,/ Tu receba o Santo Reis,/ lhe dê gorda criação,/ e dê a cada Careta/Uma gratificação,/ dê uns três perus de roda,/ Três galinhas, três capão,/ Três alqueires de arroz,/ Cinco sacos de feijão,/ Setenta latas de óleo,/ Dez quilos de macarrão,/ Pague bem as cantadeiras,/ E ao tocador de violão,/ Quando for dia de festa,/ Pode gastar um milhão,/ Porque se não for assim,/ Não recebe a salvação…”

“…Seu Antõe Geraldo,/ Nosso Boi morreu,/ Quebrou o pescoço/Na beira do poço./ Quebrou a costela/Lá pela cancela./Morreu foi de fome,/Mas porém se come./ Morreu de tingui,/Lá no Piauí./Mas agora o Boi/Vamos repartir./Do meu Boi o caldo/é do seu Reinaldo./E do Boi a mão/é do seu João./Do meu Boi o dente/é do Presidente./Do Boi a gula/vai pro velho Lula./O chifre direito/fica pro Prefeito,/E o corredor/pro Governador./ E do Boi o ovo/vai para esse povo./A tripa gaiteira/vai pra moça solteira./A tripa mais fina/vai pra menina./ A tripa cagada/pra mulher casada./ E o sobrecu/vai pros urubus./Do meu Boi o rabo/vão pro Diabo./Do meu Boi o fundo/vai pro vagabundo./E o mocotó/vai pra sua avó./E do Boi a testa/vai pra quem não presta./E do Boi o figo/vai ficar comigo./Costela mindim/vem também pra mim…”

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.