AUTOR
Clauder Arcanjo é escritor. Lançou quatorze livros: Licânia (contos, 2007); Lápis nas veias (contos, 2009); Novenário de espinhos (poesia, 2011); Pílulas para o silêncio (aforismos, 2014); Uma garça no asfalto (crônicas, 2014); Cambono (romance, 2016); Separação (contos, 2017); O fantasma de Licânia (novela, 2018); Mulheres fantásticas (contos, 2019); Sinos (poemas, 2019); A província em exílio (discursos, 2019); Confidências literárias (crônicas, 2021); A razão de Acácio (romance, 2022).
A PUBLICAÇÃO
O livro ‘Pindaíba’, de autoria de Clauder Arcanjo, foi publicado em 2023, com 128 páginas, pela editora Sarau das Letras.
CIRCUNSTÂNCIAS
Chico Buarque e Clauder Arcanjo entendem as mulheres. Escrevem músicas e livros sobre elas, seu mundo, suas almas inquietas. Chico colocou Teresinha para escolher entre três cavalheiros. Não bastasse ter criado ‘aquelas’ mulheres fantásticas, Clauder Arcanjo deu vida a Ferreirinha e lhe concedeu a habilidade de encantar e frustrar as mulheres, todas elas, vivendo na pindaíba.
Do primeiro ao último capítulo, a novela acompanha o protagonista e suas reinações, claro, falando de cada mulher “como se fosse a única, como se fosse a última”.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
Clauder Arcanjo anda nos caminhos literários como se lhe coubesse escrever o mundo. Ainda que ele (não) saiba que isto é impossível, mesmo com sua dedicação absoluta e sua vocação infinita, vai escrevendo contos, crônicas, aforismos, discursos, poemas, novelas e romances encantadores. Desenha e descreve com palavras personagens que seus leitores fiéis e atentos sabem ser reais — ou não seriam possíveis e inesquecíveis. Depois disso, quem lê sente, a história se escreve sozinha.
Cada livro de Clauder Arcanjo é um pedaço dessa literatura total impossível.
O LIVRO
Alguém poderia sugerir que entre homem e mulher, quando eles se desejam, é inútil meter a colher. Nada parece capaz de separar os dois. Nem o casamento, talvez o dinheiro, quem sabe a Pindaíba?
Pindaíba é uma dessas histórias de atração sem limites e de separações inevitáveis entre homem e mulher. Senhor Ferreira das Mercês e elas.
Ao final da leitura dessa novela brevíssima, e intensa, a questão é se é possível desenvolver a mesma habilidade de Ferreirinha de dar e conquistar amor que supera os limites e as imposições do dinheiro.
CURTAS
“Minha Dodó, o céu se enche de estrelas para celebrar o nosso amor. Deixemos as coisas menores de lado. Deus há de nos ajudar. Olhai os lírios do campo…
“Não saí da casa de meus pais para me entregar a uma vida de sem-vergonhice, senhor Ferreira.
“Nem sei como acertei o caminho de volta. A mente turva, os pensamentos em alvoroço, a culpa a mexer, e remexer, com os meus miolos. Ao pôr os pés na sala, entreguei-me ao sofá.
“Não o tinha como caçador de mulheres desamparadas. Espero que não esteja apresentando a ela suas manias e rabugices de homem solteiro, muito menos desfilando seu surrado rosário de filosofias tupiniquins, retiradas do último almanaque de autoajuda.
“Eu não devia ter me calado, não devia. O caso não era de polícia. Fome, apenas fome, Gervásia! Ah, meu Deus! Ô, meu Deus!
“Ferreira não sabia se rezava ou se implorava; com pouco, ajoelhou-se e ficou cabisbaixo no adro da igreja.
“Um trinado na copa da árvore atraiu-lhe a atenção..um canário, em canto belo, a encantar a companheira, esta no galho ao lado. Com pouco, os dois se encontraram ternamente.
BONS MOMENTOS
“Era hora do Ângelus, ele costumeiramente voltava naquele horário, coçava o rosto com a barba hirsuta por fazer, o gesto do pelo-sinal de forma descrente, e solfejava uma ave-maria. Entrava no banheiro., em seguida, cheirando a sabonete, chamava-a de “princesa“ num tom manhoso, enquanto a esposa lhe exigia os cobres do mercadinho, do débito com a padaria e do botijão de gás…Enfim, a vida com o mínimo de dignidade. No entanto ele afastava todas aquelas cobranças de sua boca, beijando-a e cobrindo-a de afagos.
“Há oito meses que o senhor Ferreira não honra com as mensalidades escolares dos filhos. A paróquia é pobre e não suporta mais, mantemos o colégio com muita dificuldade; aprovei para seus filhos uma bolsa de cinquenta por cento, coisa que só concedemos aos mais necessitados. Mesmo assim, nem um centavo foi pago pelo seu esposo. É tripudiar da nossa boa vontade. Vim até aqui com a missão de pedir a vocês que resolvam tal situação, ou não me restará outra saída senão…
“A cena revista. A correria desabalada daquele senhor à saída do supermercado. A minha entrada, disperso. O choque entre nós dois. A pessoa no chão, um pacote de carne próximo dele. A voz de alguém a ordenar: “Pega ladrão! “. Da cena, como se em câmara lenta, a correr na tela do juízo, a parte relativa ao olhar do homem junto ao pacote, o objeto do furto. Em seus olhos, a placidez da fome, a entrega ao destino.
“Nesta noite a coisa ganhara amplitude: o aroma dela nos lençóis, os lábios finos a lhe criticarem e lhe atentarem…enfim, um pesadelo. Ele, aflito, a argumentar, tentando estabelecer a paz com Domênica Melgaço., ela mais linda do que nunca, tal qual quando a conhecera. Sem falar no vestido de seda fino e colorido a marcar-lhe o corpo, e ele rogando-lhe perdão. Tudo em vão, ela a desprezá-lo e…
“Ferreirinha dormiu profundamente. Sonhou que entrava em um campo onde imperava uma paz angelical. Cercado de tranquilidade e de cordura, descansava e via-se abraçado por uma dama apaixonada. Ela acariciava-o, a tomá-lo nos braços, afastando todos os seus fantasmas do passado. A expulsão de casa: “Você, como provedor do lar, tem se revelado um fracassado. Um fracassado!”, o enamoramento com Gervásia, o recurso à cartomante, a busca por caminhos desconhecidos, a desorientação, os dias no hospital, os cuidados de Magda…Tudo em flashes rápidos, mas vivos e intensos.