Pré-leitura do livro ‘Essa Gente’, de CHICO BUARQUE – por Osvaldo Euclides

O AUTOR

Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, publicou, além das peças Roda Viva (1968), Calabar (1973), escrita em parceria com Ruy Guerra, Gota d’água (1975), com Paulo Pontes, e Ópera do Malandro (1979), a novela Fazenda Modelo (1974) e os romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O irmão alemão (2014).

A PUBLICAÇÃO

O livro Essa Gente, de autoria de Chico Buarque, foi publicado em 2019, pela editora Companhia das Letras, com 191 páginas, orelhas de Sérgio Rodrigues.

CIRCUNSTÂNCIAS

Chico Buarque tem um ritmo peculiar de criação e trabalho. Ele alterna longos períodos em que produz novas canções com temporadas de shows ao vivo. E depois das duas coisas e de alguma folga, ele se impõe escrever um novo livro. Segundo ele mesmo, isso descansa ora o cantor, ora o compositor, ora o escritor. E todos se recompõem.

Além disso, muitos esperavam dele uma palavra especial (música, livro ou teatro) sobre o momento do Brasil. Uma geração de brasileiros encontrou compreensão e consolo nas canções dos tempos de chumbo nos anos 1960 e 1970.

A IMPORTÂNCIA DO LIVRO

‘Essa Gente’ não se furta a dizer alguma coisa sobre o que se passa no país. E diz de maneira contundente, mas sutil. A qualidade literária se coloca no nível mais alto. Fatos inaceitáveis acontecem e se repetem, tornam-se cotidianos e todos se acostumam, se acomodam. O livro mostra uma nação que assiste seus problemas crônicos se tornarem agudos. Tão dramaticamente agudos que a noção de limite desaparece (vários limites, o que é legal e o que é ilegal, o que é natural e o que é absurdo, o que é pessoal e o que é social), mesmo que alguma coisa da beleza da terra permaneça, mesmo que alguma alegria e um saldo de esperança jamais desapareçam e uma dose de fino humor funcione quase como uma anestesia.

O LIVRO

O livro conta os dias que correm neste ano de 2019 na vida de Duarte, um escritor de sessenta anos, que enfrenta os problemas da idade, de dinheiro e de insegurança sobre seu valor como artista. Ambientado no Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa, a trama envolve mais diretamente duas ex-mulheres e um filho. O livro é breve e composto de textos curtíssimos (diários, cartas e relatos rápidos). Não há ideia ou palavra fora do lugar ou sem uma função. Há um clima de urgência na escrita que se transmite ao leitor.

CURTAS

“Não sou de bater em mulher, nem me dá prazer algum magoar o coração delas. Prefiro as que já vêm magoadas por outro homem; mulheres traídas, por exemplo, mulheres com raiva…”

“A fim de emagrecer, começou um tratamento com enzimas, e me pergunta se notei que está falando em rimas. Pretende até falar em decassílabos…”

“Um preto desata a correr, estava demorando. Dez, vinte banhistas correm atrás. Agarram o preto, vão linchar. Chegam dois PMs pardos e isolam o preto. É deles o direito de bater no preto…”

“A Rosane não achava de bom-tom perpetuar a bigamia, somente custava a decidir entre os dois, e durante três meses foi como se andasse com um sapato diferente em cada pé.”

“Ela ainda acha o Rio a cidade mais maravilhosa do mundo, mas quer distância.”

“Aos passantes com quem cruzo de volta para casa, ergo um brinde com o copo na mesma mão direita que outro dia empunhou um revólver. O copo de uísque parece provocar indignação.”

BONS MOMENTOS

“Em suas curtas andanças pelo bairro, meu filho nunca deve ter chegado sequer ao calçadão da praia. Tampouco seu cão, que, não obstante, tão logo vê o mar pula na areia e sai em disparada para o mergulho. Eu poderia tentar impedi-lo, pois há uma lei que interdita animais na praia, mas acho que a Guarda Civil faz vista grossa para cães de raça e donos com pedigree.”

“Paranoia por paranoia, eu mesmo já tive ganas de me atirar debaixo da cama ao escutar o ronco de helicópteros a sobrevoar meu edifício de manhãzinha. Com o tempo, porém, fui perdendo o medo de chegar à janela para vê-los pairando a uma centena de metros, as portas abertas com policiais armados. Era esperável que eu me confortasse com a presença deles…”

“Confio em que tomes tuas providências sem tardança, pois de nossa parte estamos tratando da mudança para Lisboa. Laila acredita que o ambiente no país em breve se tornará insuportável para gente de esquerda como ela e intelectuais em geral com eu. “

“Era como se, ao posar de vestal do templo, meu pai tacitamente os acusasse de prevaricar, auferir propinas, vender sentenças ou delitos do gênero. Em revide, eles se deleitavam a insinuar que, se o desembargador Duarte quisesse dar lições de honestidade, deveria começar pelo seu próprio teto. A reputação de minha mãe rendia comentários velados até na minha escola, frequentada por outros filhos de magistrados…”

“Cobrindo o rosto com a bolsa, Maria Clara deixa o prédio e se instala com o major no banco traseiro da viatura que acionou a sirene. O major convida o menino a entrar também, mas ele resiste e senta em cima do cahorro, que estava propenso a aceitar o passeio. O capitão nervosinho ordena ao garoto que se decida de uma vez: segue com a mãe ou fica com o pai. Fico com ele, diz o garoto, referindo-se ao cão.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

Mais do autor

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.