PRÉ-LEITURA DO LIVRO “CALDEIRÃO A GUERRA DOS BEATOS”, DE CLÁUDIO AGUIAR

O AUTOR

Cláudio Aguiar é escritor (romancista, dramaturgo, ensaísta e poeta) nascido em 1944, com importantes prêmios nacionais (como Jabuti, em 2015) e internacionais (2009, Espanha, “Miguel de Unamuno”). O escritor tem graduação e doutorado em Direito.

A PUBLICAÇÃO

O livro “Caldeirão a Guerra dos Beatos”, de autoria de Cláudio Aguiar, com 352 páginas, foi lançado em 1982, prefácio de Franklin Oliveira.

CIRCUNSTÂNCIAS

Padre Cícero entrega ao beato José Lourenço o Caldeirão, uma terra nua e virgem, para desenvolver uma comunidade sustentável para seus mais humildes devotos. Cláudio Aguiar conta o que aconteceu, segundo seu ponto de vista, no limite entre memória, ficção e realidade. 

A política, a religião e a força militar se misturam na luta de poder e interesses que vai construir e destruir o empreendimento, culminando com um genocídio.

A sequência de eventos é narrada por um sobrevivente (Mestre Bernardino) próximo ao beato José Lourenço a um jornalista.

A IMPORTÂNCIA D0 LIVRO

Leia Jorge Amado (sobre o livro Caldeirão): “Para um velho romancista é sempre enorme alegria descobrir um novo colega de ofício. Sobretudo quando se trata de alguém senhor de indiscutível vocação servida por grande talento. Caldeirão é excelente. Trata de um assunto empolgante com a força e dignidade por ele exigidas. A narrativa é de primeira ordem e os diálogos magníficos. As figuras parecem esculpidas de tão dramáticas, reais e transfiguradas. Ninguém vai mais esquecer o beato José Lourenço”.

Caldeirão aconteceu em 1936 e por semelhança se junta à Guerra de Canudos (Bahia, 1896) e à Guerra do Contestado (Paraná, 1916). Violência contra pobres em áreas rurais.

O LIVRO

“… Caldeirão não podia continuar: era um desafio à selvagem estrutura agrária do Nordeste. E sua gente foi massacrada — 40 anos depois Canudos repetia-se na Chapada do Araripe. É a história desse genocídio que compõe a estória de Cláudio Aguiar. E ele a reconstitui no tom maior da epopeia. Em Caldeirão a trama estilística é menos densa do que em Sargento Getúlio, mas só por má-fé pode-se dizer que Claudio Aguiar é um epígono de Guimarães Rosa.“ Este é um trecho do prefácio de Franklin Oliveira.

A região Sul do Ceará, o Cariri, teve intensa movimentação política na primeira metade do século XX. Avançado na idade, Padre Cícero entrega ação e decisões a Floro Bartolomeu, seu braço direito na vida pública, que parece ter planos próprios para o Caldeirão.

O beato José Lourenço está no foco de uma rica experiência de inclusão social de formato comunitário, que a elite percebe como socialista, contestadora.

Fanatismo religioso, manipulação política, violência pessoal e institucional, Caldeirão junta tudo com um toque humano, a simplicidade lógica do camponês. 

Uma leitura da mais alta qualidade.

CURTAS

“… Não compreendi bem se ele contava um sonho ou se falava de real visão. Aliás, na verdade, nunca separei as duas coisas. Elas vivem de uma vez dentro da gente. Quem é que pode separar se o sonho é fruto da vida?

“… Chorando por que, minhas filhas? A gente deve sorrir na cara desses perna-de-sola… Que foi que a gente fez de errado? Vivemos só do nosso trabalho e na reza, só. Chorar de quê?

“… Me diga onde se arranja as armas para reagir? Só temos espingarda de  passarinho. O resto é instrumento de trabalho. Onde se arranja as armas? Onde?

“… Igreja mais política mais força militar geram a Trindade do Mal, a parte que nos atacou por todos os lados…

“… se eles me querem, mestre Bernardino, por que não me apresento? Se é de cair muitos, que caia um só. Aí, vocês ficam livres. Eles me querem, Mestre…

“Essa gente, Tenente, precisa de ensino…Que tragam aqui as mulheres!…Esse velho aqui de barbas compridas, Tenente, deixe comigo. Eu vou cortar a barba dele a foice…

“… Todos deitados para não levarem queda depois dos tiros. Todos deitados.

BONS MOMENTOS

“… Foi quando o capitão Tourinho disse bem alto que estava a chegar o coronel Cordeiro Neto, Comandante-em-chefe daquela operação, para dar a palavra final sobre o que deviam fazer com a gente. Recordo bem que o nome do coronel era Cordeiro. No entanto, como não agia com a docilidade daquele animal, o povo logo o chamou de Lobão. Coisa do povo. E assim ficou.

“… Aqui é um por todos e todos por um. O que o senhor vê, estendido na vista, não foi construído para o beato, mas para todos. Para toda a enumeridade dos mortais daqui. Não mais de 400 casinhas cheias de gente que come todo dia, que veste roupa de fio puro de algodão, que calça couro de boi curtido ali no curtume, o engenho faz a rapadura, o mel e o alfenim, os paióis estão cheio de cereais, algodão de primeira não falta, gado tem muito, porcos, cabras, animais de carga e bichos de pena, fruteiras, verdura e muita plantação mais. Isso só se faz com muito amor ao trabalho, capitão. Isso tudo pertence a todos nós. Aqui se vive de barriga cheia. Ninguém é escravo do beato José Lourenço.

“… O tenente mandou que todos se juntassem uns aos outros, formando uma corrente humana. Ficamos lá. O tenente deu uns gritos para os soldados apresentarem as armas em nossa direção. Só aí percebi que eles formavam um pelotão para nos fuzilar. Mesmo assim, disse ao ouvido do compadre Isaías que eles não atirariam. Eles tinham medo, eram covardes. Queriam nos torturar, apenas…

“… enquanto a fotografia foi batida, o tenente aproveitou o grupo arrumado no mesmo lugar para avisar que as moças solteiras que não tinham parentes próximos no Caldeirão seriam levadas para Fortaleza juntamente com a Força. O aviso, dado sem a menor cerimônia, não podia ser coisa da cabeça dos maiorais do mando. Não podia ser possível. Com que direitos os oficiais do governo mandavam nas vidas dos outros assim?

“… nada no mundo acontece sem que a ordem natural imponha o seu governo. E por que os homens não imitam, pelo menos, a natureza? O senhor já viu como ela é sempre jovem, alegre, vencedora? Ah, como se evitaria tanto absurdo, tanto crime, tanto sacrifício desnecessário!

“… Lá no interior da casa, homens de figuração ilustre, de conversar complicado, decidiam providências, arrodeando meu padrinho Cícero. Ao lado, o Dr. Fuloro (Floro Bartolomeu), posudo, de gravata caindo pelo peito longo, com bigodes cuidados a caprichos de dar inveja, espalhava beleza no meio daqueles olhos de romeiros que já se ajagunçavam na quentura dos tempos de guerra.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.