O AUTOR
Pedro Nava (1903-1984) foi médico e escritor. Publicou sete livros com suas memórias, que escreveu entre 1968 e 1984, o último, inconcluso, foi editado postumamente. Ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti.
A PUBLICAÇÃO
O livro “Baú de Ossos”, de autoria de Pedro Nava, foi publicado em 1972, pela José Olympio Editora, com 609 páginas. Abre a sequência que traz Balão Cativo (1973), Chão de Ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo-das-Trevas (1981), Círio Perfeito (1983) e Cera das Almas (2006).
AS CIRCUNSTÂNCIAS
Este livro abre uma série de sete livros com as memórias de Pedro Nava, médico mineiro com ascendência cearense, que viverá no Rio de Janeiro. Ao expor a sua árvore genealógica e sua infância, percorre eventos de Minas, do Ceará e do Brasil e cita personagens interessantes ou relevantes da história numa amplitude de dois séculos.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
Pedro Nava é daqueles escritores de estilo absolutamente singular. Sobre isso, Carlos Drumond de Andrade disse que “…Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o leitor, com suas memórias de infância, a que deu o título de Baú de Ossos. Seus guardados nada têm de fúnebre. Do baú salta a multidão…”.
Num programa Roda Viva, da TV Cultura, a Imortal Rachel de Queiroz (prima de Nava), citou-o numa curtíssima lista dos melhores escritores brasileiros que abria com Machado de Assis.
Pedro Nava se credencia como excepcional memorialista com sua obra monumental, com seu texto único e de, segundo Drumond, de espírito musical, com influência proustiana.
O LIVRO
O livro se estrutura em quatro longos capítulos. No primeiro, Setentrião, o tema central é o ramo cearense da família Nava. No segundo, Caminho Novo, o tronco familiar mineiro. O terceiro e o quarto capítulos, Paraibuna e Rio Comprido, abordam a infância de Pedro Nava em Juiz de Fora e Rio de Janeiro. O texto alcança o ano de 1911, quando seu pai morre. Importa notar que o livro recua no tempo até o século XVIII.
Nava fala da estrutura das famílias, das casas, também dos hábitos individuais e do comportamento coletivo e conta histórias breves. Visita a cultura e a política, assim como as cidades. Há referências à morte e aos eventos que a cercam, mas nem de longe Baú de Ossos é um livro triste. Pedro Nava parece ter vivido a vida se preparando para fazer a grande literatura. E fez até pôr ele mesmo um ponto final na vida.
BONS MOMENTOS
“Batida”, no Ceará, é uma rapadura especial, feita com melado sovado e arejado a colher de pau, até o ponto de açucarar. Com o que perde também o gosto de rapadura. Vira noutra coisa devido à versatilidade do açúcar, que é um em cada circunstância, e que é ainda um a quente e outro a frio. Que é ostensivo ou discreto, acessório ou predominante, substantivo ou adjetivo segundo se combina ao duro, ao mole, ao líquido, ao pulverulento, ao pastoso, ao espumoso, ao sol e ao gel…
“Para adoçar a boca, manga. Para refrescar o corpo, garapa de tamarindo. Para rebater o banho, pinga de macaxeira. E esse sorriso, essa lombeira, essas pálpebras pesando…Foi sonho ou tinha mesmo aqui aquela saia branca arregaçada e aquela pele escura? visão fugindo cheia de risos e se escondendo entre os verdes, os azuis, as folhas, os galhos…
“Meu avô, negociante e dono de casa comissária, provavelmente nem sabia desses brasões. Sua grandeza, como se verá, vinha das qualidades — de que basta o homem ter uma — para tornar-se merecedor da vida. A retidão, a bondade, a inteligência. O maranhense Pedro da Silva Nava tinha as três. E outra mais, que não legou aos seus descendentes — uma harmoniosa beleza física.
“… toda uma estrutura social bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Rui Barbosa, de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. Esses estabelecimentos tinham sido criados, com a cidade, por cidadãos prestantes que praticavam ostensivamente a virtude e amontoavam discretamente cabedais que as gerações sucessivas acresciam à custa do juro bancário e do casamento consanguíneo.
“…pior que o cinema Farol e o Politeama onde se tentavam timidamente os ensaios precursores da bolina (o Politeama viu o primeiro mártir dessa arte nacional desmaiar de dor na sua plateia: marido furibundo lhe empolgara com um alicate dedo da mão audaciosa que se insinuara nas anáguas da mulher, para apertá-lo tão duramente e em tão demorado silêncio, que ficaram esmagadas as carnes e quebrados os ossos do moço advogado), pior que os bordéis, pior que os colégios leigos e que o desaforo do colégio metodista para meninas…
“Os anos engordaram, curvaram, deformaram minha avó, mas não prevaleceram contra seus olhos. Sexagenária, septuagenária, octogenária, ela os trazia cintilantes —não mais cabuchões inteiriços, mas mosaicos poliédricos — que assim partidos, facetados e fissurados pelo tempo, davam novas superfícies de reflexão à luz e mais faiscavam na fisionomia a que emprestavam a incorruptível beleza que impressionava a todos.
CURTAS
“Ouvi pela primeira vez a palavra greve — dita por uma de minhas tias, tão baixo e com um ar de tal escândalo, que pensei que fosse uma indecência, e corei até as orelhas.
“Esse lado de Juiz de Fora, revolucionário, irreverente, oposicionista, censurante e contraditor, dizia sempre não! ao outro, ao do Alto dos Passos, conservador, devoto, governista, elogiador e apoiador.
“…não há famílias superiores nem inferiores — que todas são frágeis na carne provisória e indefectíveis na podridão final.
“Ilha, rei, São Luís Rei. Ou então, mar, amar, aranha, arranhão. — que se entrelaçam e emaranham na graça da palavra Maranhão.
“Construia-se melhor, mais amplamente, assobradava-se, requintava-se nos móveis e nos ornatos externos e a casa passava a desempenhar o papel de elemento de convivência social, além de simples moradia.
“Era inimiga de tudo que favorece a fantasia e torna a vida suportável.
“Suas palavras batiam duro como calhaus, diretas como tiros, incisivas como machadadas. Mas com isso tudo não gritava e nem se arrebatava.