O AUTOR
Antonio Sales (1868-1940) foi escritor (poeta e romancista), líder na criação da Padaria Espiritual, além de jornalista, deputado e secretário de Estado no Ceará.
A PUBLICAÇÃO
O livro “Aves de Arribação”, de autoria de Antonio Sales, foi publicado em 1913, dez anos depois de ser veiculado em capítulos, entre janeiro e maio de 1903,
nas páginas do jornal carioca ‘Diário da Manhã’. As inúmeras reedições trazem pouco mais de 200 páginas (editora Nacional, Livro Técnico…).
CIRCUNSTÂNCIAS
“Aves de Arribação” é seu único “romance realista regional, com traços naturalistas“. Considerando a época e esta classificação, seria de esperar que o livro falasse de seca e pobreza no sertão. Não é o caso. Os dois temas não são tratados no livro. A natureza é bela e generosa. Grandes e floridas árvores, belos e afinados pássaros e a música das águas são descritas com brilho encantador.
Entretanto, não há prosperidade. Nada avança. Há pobreza de opções e de perspectivas para a cidade e para as pessoas. No cenário político, o coronelismo se mantém e atravessa sem problemas a transição da monarquia para a república, no sertão uma mera troca de cadeiras.
Tudo e todos parecem limitados, enquadrados. A única saída parece ser abandonar a cidade, fazer a migração para a capital ou para o sul do país.
Nesse ambiente e nesse contexto, Antônio Sales descreve circunstâncias e escolhas decisivas na vida de duas mulheres, e traça-lhes o destino.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
Raquel de Queiroz referiu-se a Antonio Sales como “a figura suprema das letras na nossa província, o nome nacional residente no Alagadiço e o padrinho de todo principiante conterrâneo“. Tomando-se este livro como referência da literatura de Antônio Sales, o que Raquel diz ainda é pouco.
“Aves de Arribação” é um livro poderoso, um clássico, uma obra-prima.
O LIVRO
O doutor Alipio chega da capital para assumir prestigiosa função no poder judiciário local. Solteiro, lança-se à corte de duas possíveis noivas bem diferentes. A trama se desdobra entre os personagens de todos os setores que compõem a realidade (religião, política, economia, serviço público), a quem o autor aplica uma vigorosa e rigorosa leitura.
Suavemente, entretanto, vai expondo a verdade mais funda de um tempo, de uma cidade sertaneja típica, dos conchavos do poder e a trajetória de duas mulheres inocentes a enfrentar preconceitos, limites e insensibilidade, Florzinha e Bilinha.
CURTAS
“O coração das virgens morre sem testamento, porque morrem com ele todos os seus dons e graças.
“…preciso de mulher que tenha chelpa e pai alcaide. Casamento de amor já não se usa.
“…eu não devo, mas temo. A calúnia é capaz de tudo.
“…não o temia porque não o amava…
“…teus olhos não dizem senão tristeza, parecem um céu de chuva.
“Confissões não se fazem em voz alta nem a uma mulher, nem a um padre…
“…o ser tem três pavimentos — cabeça, coração e carne.
“…não há em toda a natureza um ruído tão agradável como o d’água e da chuva…a não ser o farfalhar de uma saia de seda.
BONS MOMENTOS
“Com o movimento rápido que ela fez, caiu o lençol, e o seu busto pompeou na meia luz da camisa, muito branco e liso, finamente torneado, deixando entrever sob a pala de renda as duas pequenas protuberâncias dos seios mal sazonados ainda pela puberdade. Os cabelos de um louro carregado, quase castanhos, caíam-lhe dos lados formando um resplendor para a beleza terrena do rosto, onde os olhos úmidos punham faiscações de revolta. Era tão formosa…
“Florzinha estava sentada, a fazer croché, à sombra da folhuda mangueira do quintal, e, manejando a longa agulha, cismava em coisas que ultimamente tinham vindo dar â sua existência uma feição insólita, perturbadora, como se de repente abrolhassem pedrouços ásperos no leito de um regato tranquilo e claro. Até então ela vivera na fruição secreta de um afeto infantilmente casto brotado em seu coração, mas tão velado e tímido que ninguém jamais o suspeitara.
“O noivo e a amante tinham-se ido em busca de climas mais amenos e propícios, fugindo, de plaga em plaga, como aves de arribação, que voam livremente para onde as atraem as louçanias da primavera. E ela ficara ali, no fundo daquele triste lar povoado dos espectros dos seus sonhos, para ser um dia conduzida, mutilada d“alma, inútil para a vida, à cela fria de um claustro como uma inválida do amor.
“O marido era funileiro, fogueteiro, cabeleireiro e consertador de relógios, de máquinas de costura e de infinitas coisas mais; a mulher, estimada pelo seu gênio alegre e serviçal, dera seu nome a uns famosos beijus de goma, que serviam de pão da manhã à maior parte dos lares de Ipuçaba.
“Consumado cômico, o cancão se diverte em arremedar todos os pássaros com uma perfeição de enganar os parceiros arremedados. Criatura alegre, só uma coisa o faz zangar deveras: é a cobra. Quando encontra uma delas — verde, goipeba, de cipó — e mesmo a temível cascavel — temo-la travada! O cancão solta um grito de alarma, e logo uma récua dos seus acorre pressurosa, forma-se em círculo e ataca o desgraçado réptil, zurzindo-o de bicadas, evitando seus botes com um voo curto para cima, baixando de novo sobre ele, ferindo-o rijo, num encarniçamento implacável, num gritaria de ensurdecer tudo. A cobra mal ferida, louca de cólera, desfalece afinal, rende-se à discrição, extira-se inerte e expira entre os gritos vitoriosos dos assaltantes.
“Quanto ao caráter, tímido às vezes até a cobardia, outras vezes exaltado até a insolência, ora afetuoso, ora insultante e caindo sempre numa crise de arrependimento depois de qualquer excesso. Um fraco, em suma. A sua vida era uma teia sem ponto de apoio nem nos mestres, nem nos condiscípulos: qualquer vento a arrastava e rompia.
“Sua índole exuberante comprazia-se nesse viver forte dos instintos, sem obrigações, sem disciplina, sem preconceitos; mas simultaneamente gerara-se-lhe no espírito uma dura razão egoística que lhe formara um subsolo moral, e a ambição germinara aí, medrara, crescera tornando cada vez mais a dominar toda a sua individualidade, ambição de fortuna, de gozos indistintos, de predominância entre os homens.