Pré-leitura do livro A NORMALISTA, de Adolfo Caminha

O AUTOR

Adolfo Caminha (1867-1897) foi escritor (romancista, poeta e contista) e jornalista. Serviu na Marinha.

A PUBLICAÇÃO

O livro A Normalista, de Adolfo Caminha, foi lançado em 1893, depois teve inúmeras reedições, uma das mais recentes com 242 páginas (Kindle, Amazon).

CIRCUNSTÂNCIAS

A seca de 1877 foi especialmente devastadora no Ceará. O autor perdeu a mãe quando tinha apenas dez anos de idade. A personagem central do livro passa por situação igual e seu pai a entrega ao seu padrinho em Fortaleza, e parte para o Amazonas. Maria do Carmo é uma adolescente pura e ingênua, além de atraente e cativante.

O que o livro descreve na relação da menina com o padrinho, enquanto passam os anos, caberá ao leitor enquadrar como assédio, abuso, estupro, incesto ou pedofilia. Ou tudo junto e misturado, tendo como pano de fundo, de um lado, a simpatia pelas atrações urbanas de Fortaleza, e de outro, o olhar severo para as perversões da sociedade cearense.

A IMPORTÂNCIA DO LIVRO

Adolfo Caminha faz uma literatura que impacta fundo o leitor, ao abordar temas delicados, sobretudo considerando o contexto de uma sociedade patriarcal, atrasada e conservadora como o Ceará dos anos 1890. A Normalista antecede em apenas dois anos o lançamento do livro O Bom Crioulo, em que Caminha trata do amor entre dois militares (um branco e um preto). As primeiras reações aos dois livros foram frias ou adversas, eventualmente passaram do silêncio à condenação frontal. O reconhecimento da qualidade literária de Adolfo Caminha iria demorar. Ele não o sentiria, até porque ele morreu jovem, aos 29 anos, de tuberculose.

O LIVRO

Mulheres diferentes, atitudes diferentes e destinos diferentes. Maria do Carmo e Lídia são personagens centrais, mas há também Teresinha e Mariana. Cada uma sofrendo a opressão masculina e a ela reagindo de seu jeito.

A trama junta grosseria masculina com sensualidade feminina, e o leitor poderá sentir, na mesma página, emoções confusas de atração e repulsa, excitação e nojo. Adolfo Caminha leva o texto nessas situações ao limite da beleza, graças à qualidade literária superior. Sem exageros, também sem concessões.

As figuras masculinas exercem sua dominação. Toda forma de poder é exercida pelos homens, cada um com seus preconceitos e desvios de comportamento. Curiosamente, o melhor perfil entre eles é daquele que tem a mais alta posição de poder, o Presidente da Província do Ceará (função hoje de governador do estado). E não tem final feliz.

CURTAS

“…queria uma rapariga nova e fresca, cheirando a leite, sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos do amor, ocultamente, sem que ninguém soubesse… estava farto do ‘amor conjugal’.

“Um rapaz de certa categoria não se deixa iludir por uma simples normalista sem eira nem beira, uma rapariga sem juízo, filha de pais incógnitos…

“Queríamos introduzir no Ceará os dissolventes costumes parisienses, à fortiori, mas não eram essas as tendências do nosso povo essencialmente católico e essencialmente crédulo.

“Um bom útero é tudo na mulher: equivale a um bom cérebro!

“Vocês da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar esta gente a pensar e a ter juízo, do contrário…

“Conheciam-se moças malcomportadas que, depois, casando-se tinham-se tornado verdadeiras mães de família.

“No Ceará não se encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo era uma récua de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até os olhos.

“Província estúpida! Estava doido para se ver livre de semelhante canalhismo. E aquilo é que se chamava Terra da Luz!

“O insulto nesta terra é um divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo.

BONS MOMENTOS

“Seguiram para a Praça do Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente na praça ensombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos sentados um defronte do outro jogavam silenciosamente o dominó no Café Java. Às portas da Maison Moderne, famílias esperavam os ‘bonds’ em pé, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar…

“…Que havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? Consentia, pudera não!, sem a menor resistência, que o amanuense afagasse-lhe o bico dos seios virgens e lhe passasse a mão pelas coxas tenras e polpudas…ela não tinha remédio senão ficar quieta, imóvel, com o olhar úmido no teto, abandonada às carícias sensuais daquele homem repugnante que a perseguia como um animal no cio, mas que afinal de contas era seu padrinho.

“Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas de cretone na sala de jantar e um viveiro de pássaros, ele de chambre e gorro, sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um robe-de-chambre todo branco, fitinha na frente d’alto a baixo, cabelo solto, a ler o último romance à moda, recostada na espreguiçadeira, sem filhos… Que vida!

“E quem melhor do que Maria do Carmo, uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos de seu temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! Não havia o menor grau de consanguinidade, portanto, não podia haver crime nas suas intenções.”

“E sem dar tempo a Maria defender-se, pôs-lhe um grande beijo na face. A normalista sentiu um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do amanuense, e um bafo insuportável de álcool tomou-lhe as narinas. Era a primeira vez, depois que saíra da Imaculada Conceição, que o padrinho lhe beijava em cheio na face. O amanuense tinha se aproximado devagarinho, de mão para trás, e, de repente, tomando-lhe a cabeça entre as mãos fedorentas a cigarro, beijou-a perto da orelha , continuando cinicamente a assobiar…

“Hoje não há que se fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós outros. Leem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócios de namoros. Sei de uma que foi encontrada pelo professor de história natural a debuxar um grandíssimo falo com todos os seus petrechos.

“Estava justamente em época de ter o incômodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de aço ao contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário, como o de uma cobra sobre um rato…

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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