Pracinha da felicidade – Heliana Querino

Sempre que penso na palavra praça, imagino as mais famosas, centrais, palcos de festivais, saraus e manifestações. Uma praça – quadrada, retrô, triangular ou mesmo circular,  com mil multidões de pé – um espaço que, por ser algo tão simétrico, deveria ser o inverso do caos. E imagino-as contrárias das indefinidas  praças digitais. Mas, quando penso em praça tranquila, me vem à mente a pracinha do Justiniano, preservo-a como lâmpada de memória pura em um instante antes da beleza dos primeiros passos.

Quando me mudei do bairro Jacarecanga e deixei os seus arredores históricos, Liceu e Praça, lá estava eu morando em frente a outro Patrimônio Histórico e Cultural de Fortaleza. Agora, quando abria a porta da varanda da casa de minha sogra, as paisagens, na rua Coronel Ferraz, eram a Praça Figueira de Melo e o Conjunto Arquitetônico Tombado, composto pelo Colégio da Imaculada Conceição, a Igreja do Pequeno Grande e o Colégio Estadual Justiniano de Serpa.  

Por um bom tempo comemorei,  com toda a família, as viradas de ano-novo com festas na calçada, entusiasmo e quase nenhum engano.  Acompanhamos de média distância a queima de fogos da Praia de Iracema, a cada ano, a cada dezena de tochas incandescentes, um pedido, uma oração, um agradecimento. Fazíamos, silenciosamente, com o coração carregado de esperança, preces para nossos sonhos. Depois, todos gritavam “feliz ano novo”! É claro que já estávamos à espera do pernil perfumado com cravo, maçã e alecrim. Mas, faltava o grande abraço dos desejos e alegrias,  e Dona Tuni, como boa católica, ainda permanecia pedindo aos santos de sua devoção que concedessem a cada filho, nora, vizinho, gato e parente, todas as bênçãos que os céus pudessem oferecer.

As semanas de finais de ano eram sempre compostas de muita agitação na casa. O telefone não parava de tocar no ateliê. Dona Tuni, “tia” Catarina Labouré e “tia” Filomena costuravam as roupas de uma boa clientela, as camisas para seu amigo e ator Ary Sherlock, os vestidos de festa para umas madames chics e também nossas roupas. Eu, Juliana e Juciara escolhíamos os modelos das revistas e elas costuravam igual. Parece que falo do século vinte, mas isso é meados dos anos dois mil.

Quando eu saía do estúdio da Major Facundo, atravessava a praça do Ferreira, seguia pelo calçadão C Rolim e entrava a rua dos armazéns. Dobrava a esquina e já estava em casa. À minha direita, a porta de entrada e um amor que me esperava para o almoço, à minha esquerda, toda a pracinha e o colégio Justiniano de Serpa.

Todas as manhãs e tardes, lá fora, na pracinha, o busto de bronze do sobralense Jerônimo M. Figueira de Melo observava atentamente Leonora alimentar mais de vinte gatinhos moradores dos arredores. Do auge de seus quase noventa anos, a velhinha Leó fazia guerra contra o destino para se manter viva junto às  históricas construções de riqueza arquitetônica do fim do século XIX e início do século XX.  

“Tia” Carmem vinha da casa na Franklin Távora, quase esquina com a 25 de Março, atravessava a pracinha do Justiniano para comer bolo recém saído do forno, “eu adoro bolo quente e esse que Tunizinha faz, hummmm…”, ela sentia de longe o cheiro de baunilha e café. E de vez em quando, fazia-nos agrados, preparava ela mesma brigadeiro de panela pra gente fazer a festa na mesa da cozinha.

Numa das primeiras passagens de ano juntos, eu brincava de sambinha na calçada com Judy e Juli.

No ano seguinte, à espera da queima de fogos, nada de samba, ali a música era lenta, Judy esperava o primeiro neném.

Veio mais um ano, o início dos fogos e a renovação. Lá na Beira Mar, multidões se despediam dos últimos minutos de um ano e festejavam, num maremoto de solicitações aos céus, sem perder de vista nenhuma faísca dos espetaculares fogos, a chegada de novos dias. Cá, na rua Coronel Ferraz, esquina com Santos Dumont, a mesma família comemorava a esperança, nas redondezas do Pequeno Grande. E nas orações, mais uma vez dona Tuni agradecia por cada filho, neta, nora, vizinho, gato e parente, enquanto nós, sentados nos banquinhos da praça Justiniano, babávamos assistindo a beleza dos primeiros passos de Ana Beatriz.

Os fogos explodiam, Bibia se encantava e os pulmões da praça sabiam,  marcadamente, era nova fase, novo respiro, a hora de ocupar o espaço com novas vivências, mesmo que fossem os passinhos de pé ante pé da pequena Beatriz.

Os filhos de dona Tuni estudaram todo o ensino fundamental e médio no colégio Imaculada Conceição.  Eu só cheguei ali depois de adulta. Passamos a dividir a mesma casa, o mesmo bairro, a mesma praça e muitos sonhos. Seu Valdo, dona Tuni, Juli, Judy, V.Jr, John, tio Zezinho e eu, a oitava personagem. As pequenas vieram depois. 

Dizem que na medida em que o espaço é vivido e compartilhado pelo outro, ele se torna parte desse espaço. 

Entre as lembranças daquela praça, o espaço  e eu, estão as vezes que atravessei “correndo” em direção à Santos Dumont, quando estava chateada por alguma birra com o meu amor ou com a mãe do meu amor.

Entre as lembranças do mesmo espaço, estão as vezes que ele, o mesmo amor, atravessou correndo, sem destino, quando estava chateado comigo ou só fazendo charme de menino.

O tempo é sabido, e os nossos espaços internos, autorais, ele não deixa vazio nenhum canto da memória, e aqui desloca o pensamento para as vezes que atravessamos de mãos dadas, a pracinha do Justiniano, para comer pastelzinho de camarão com molho de pimenta no Sabor da Picanha da rua João Cordeiro com Santos Dumont.

Os fogos de artifícios, os gatos de Leó,  os bancos e as árvores da Praça e a árvore de Natal, as orações de ano novo, a esperança e a proteção das asas da Mãe Rainha, os presentes, a sala de alfaiataria, a pracinha da felicidade. 

Era difícil saber quem já tinha vivido mais, a velha Leó, a dona madame cliente dos vestidos chics ou moça vinda do interior, na casa dos seus vinte e alguns anos. 

A vida mudou, o casamento findou-se, o afeto continuou, cada um seguiu novo caminho, a praça permanece lá. Mas, se ainda hoje alguém aflige meu coração, eu sei onde me confortar com abraço, um pedaço de chocolate e um copo de caldinho quente na casa de Juli e Maria Antonieta.

Atualmente, a alma de Leó vive em lugar privilegiado, lá no céu faz companhia a Dom Joaquim José Vieira, às irmãs fundadoras, “tio” Zezinho, ao Engenheiro José Gonçalves da Justa, que desenha casinhas nas nuvens para as crianças órfãs morarem.

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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4 comentários

  1. Renata Frota ( Biscoitinho de leite)

    Que belas palavras minha amiga. Me fez viajar e me imaginar onde estava. Quanto orgulho de vc. Menina dos olhos se jabuticaba. Saudades de vc.

    • Heliana Querino

      Biscoitinhoooooo de leiteeee, nossaaa que saudade. E que que lindo você lembrar do nome que carinhosamente eu te chamava…

      Muito feliz em saber que minha amiga é também minha leitora. Menina, vamos nos ver, onde te encontrar? Saudade de você, Juliana, Silvinha…

  2. Gilmar de Oliveira

    Conheço muito bem esses lugares. Belas e românticas descrições!
    Parabéns escritora Heliana.