PORQUE ME UFANO DO MEU PAÍS

(O clamor de um velho resistente e perseverante brasileiro, cansado de tanta esperança perdida]

Não foi necessário recorrer a algumas das formas de Inteligência Artificial, aos algoritmos inteligentes e astutos denunciadores do bem e do
mal do mundo e das criaturas , tampouco à perspicácia dos chatGBT.

Construí artesanalmente um robô ao qual chamei de “Champollion”. E dei-lhe algumas tarefas e incumbências.

Impregnei-o de ares e atitudes de octogenário, deu-lhe personalidade consentância com a idade que lhe reservara. Emprestei-lhe alguns impulsos contidos de um senhorzinho bem educado e de boas maneiras. Reservei-lhe a moderação de um conservador com reservas suficientes de paciência e tolerância. E cedi-lhe um provimento de fé para os desafios que a vida impõe por estes lugares ao sul do Equador.

Pedi-lhe que atendesse à programação desenvolvida e inoculada na memória da máquina das nossas inquietações e se assegurasse da adequação da “proxy” para filtrar, monitorar e controlar o trafego da informação entre pessoas aceitas como merecedoras de tais esforços. Cuidei para que tudo ficasse bem esclarecido.

“Champollion” pôs-se e emitir ruídos insuspeitados e iniciou a sua fala, um longo depoimento sobre fatos, propósitos e circunstâncias que condicionavam os seus arquivos e registros. Uma história arrastada sobre como se tornara “brasileiro”, pela graça de Deus, “malgré lui même”…

Falava como se houvesse pessoalmente sentido as emoções e compartilhado as injunções de uma vida vivida em um país que lhe concedera a conspícua cidadania brasileira.

“Passei por muitas experiências, conheci situações inusitadas e testemunhei fatos trágicos, outros, por si, iníquos, perversos — injustificáveis.

Conluios, golpes e contra-golpes de Estado, ditaduras, a persistência da pobreza e os caprichos de oligarquias poderosas, o domínio dos dissimulados dogmas da fé e do poder do Estado. Em tudo, busquei um sinal, a indicação de movimentos que se justificassem historicamente em um quadro eminente de progresso civilizatório. Inutilmente.

Já agora, no refluxo de eventos recentes, delineia-se com fortes cores trágicas o caráter de uma nação que não queríamos ver formada. Todos nós sonhávamos com um projeto limpo, construído por pessoas decentes sobre uma plataforma de bons propósitos e de impecáveis intenções. Insegurança jurídica, insegurança pública, um sistema penal permissivo, corrupção no plano das atividades privadas e dos negócios do Estado poderiam configurar, “per se”, sintomas preocupantes de persistente desorganização institucional e dos desvios incompatíveis com o Estado democrático de Direito.

Esta mostra de desorganização reflete-se, todavia, no plano da governabilidade, com graves reflexos sobre os poderes do Estado, sobre o equilíbrio das suas competências e os mecanismos de freios e contrapesos do governo da nação.

“Em oito décadas, aponta ‘Champollion’, valendo-se do seu acervo de arquivos e registros e das disponibilidades dos algoritmos de que se serve sob a segurança dos seus controles “proxy”: a tudo assisti e fui testemunha ocular de feitos memoráveis e de fatos insuspeitados. Tornei-me cúmplice, calado pelo medo, temi a força dos agentes públicos e dos seus poderes ilimitados. Pus-me solidário com a maioria silente e cúmplice e — afinal, ninguém é de ferro — busquei participar da grande festa na qual todos se locupletavam.

“O país cresceu no compasso dos desarranjos institucionais tolerados. quando não encorajados Crescemos — explodimos em um crescimento populacional exponencial — de par com uma vocação acentuada para a preservação de traços culturais ancestrais, mergulhados em um certo atavismo que confundimos ingenuamente com alguns aspectos do caráter nacional de um povo que se quer, ‘sponte sua’, alegre, bom e cordial, sob um céu que tem mais estrelas e os bosques, mais flores’. ‘Somos uma grande nação, ampla porção do mundo nos pertence’, afirmava o conde Afonso Celso, ao explicar porque nos orgulhamos tanto do nosso país: ‘somos filhos de um bondoso, sadio, robusto colosso’; ‘não há no mundo país mais belo do que o Brasil’; de Rocha Pitta, lembra que o Brasil ‘é a melhor opção do novo mundo’; em nenhuma outra região, se mostra o céu mais sereno, nem madruga, mais bela, a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios mais dourados, as estrelas são as mais benignas…’

O que fizemos dessa herança gentil? Como foi possível esquecermos as “promessas divinas da esperança” encerradas no estandarte “que a luz do sol encerra”? O que faremos das sobras desse legado?

Como nasceu e propagou-se o ódio entre os brasileiros? Como nos tornamos tão cruéis, no crime e no assalto ao bem-comum? Como fraudamos os interesses públicos e as aspirações privadas? Como foi possível fazer da política um negócio entre-amigos e das tetas do Estado a fonte da riqueza de muitos? Como pode existir quem pretenda falar em nome do povo e amordaçá-lo e vigiá-lo para que não pronuncie palavras incômodas aos ouvidos dos que nos governam? Como cedemos espaço à mediocridade e lhes transferimos o direito para decidir por nós, cedendo-lhe a representação e o mandato ? Como conseguimos guardar a nossa indignação perante o assédio organizado ao patrimônio da nação e do público: do roubo noturno da fiação elétrica e telefônica ao subfaturamento das compras do Estado? Como as pessoas enriquecem nos beirais do Estado, em comandita com o grande empreendeforismo político que explora a nação e os veios dos governos? Como ouvir, calados e cúmplices, os pequenos-grandes roubos cotidianos, no peso e e na medida, o superfaturamento dos bens essenciais da saúde, o sangue desviado de quem dele necessita e o dispêndio de um Estado dissipador e de governos que vivem acima das suas possibilidades, mas não das suas ambições?

Como emudecer diante da usinagem de boatos e rumores orquestrados pelos agentes da “desinformação” — das “fake News” que alimentam a mídia e as plataformas e redes sociais?

Como guardar esse restinho de dignidade que nos há de faltar em pouco?

Como deixar de formular perguntas e críticas despropositadas como as que se fazem em uma democracia regular e inteira?

Como continuar a ser brasileiro e encontrar uma certa alegria de sermos o que pretendíamos ser?

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.